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4 de agosto de 2019
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21:20

A Sinfonia número 10 de Felipe Santa Cruz e a destruição do país com a complacência da mídia

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Sul 21
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A Sinfonia número 10 de Felipe Santa Cruz e a destruição do país com a complacência da mídia
A Sinfonia número 10 de Felipe Santa Cruz e a destruição do país com a complacência da mídia
Presidente da OAB, Felipe Santa Cruz | Foto: Eugenio Novaes/Divulgação

Tarso Genro (*)

Sábado, 20 de julho,19.00 hs em Montevidéo. Auditório Nacional “del Sodre”, sala Eduardo Fabini. Entra no palco com solenidade humilde o Maestro Michele Gamba, que vai dirigir a Orquestra Sinfônica Nacional na execução da Sinfonia n.10, em Mi menor, de Dmitri Shostakovich. Ele foi um dos grandes compositores do Século XX, de convívio sofrido com o o regime staliniano, que nesta  obra procura libertar-se dos temores do “enquadramento” repressivo e experimentar a liberdade plena para exercitar a sua arte. E o faz com a grandeza de prever novos tempos para o país, em reconstrução material e moral.

A platéia aplaude o Maestro comovido. A orquestra fala. Cada um receberá a “número 10” de acordo com a sua experiência de vida e os seus traços de memória: seu convívio com o mundo vivido, com as pessoas dos seus afetos e rejeições. A número 10 é aproximação e repulsa que o povo soviético – recém saído da Guerra –  celebra como um grande de degelo. É um povo inteiro que derrotou o nazismo e quer experimentar a derrota da “exceção” interna, ainda amparada nos métodos stalinistas de exercício do poder.

Shostakovich diz na Sinfonia número 10 que a sua vida sua vida inteira, grande parte dela vivida sob o culto manipulador do “guia genial”, foi um exercício de sobrevivência que algum dia precisaria resgatar,
livre das opressões burocráticas e do controle policial contra os “traidores da pátria”.

Aqui estamos vivendo a omissão manipuladora da mídia tradicional sobre o canibalismo fascista em curso, em benefício das “reformas”, período que um dia a grande arte resgatará para formar as novas gerações.

O aparato burocrático que controlava as artes, à época -no então “realismo socialista”- permitia que as sinfonias do compositor refletissem o seu gênio depressivo e a sua relação ambígua com o regime. A contrapartida, todavia, era que o final memorável, de cada uma das sinfonias, fosse uma estridência
patriótica e otimista, que dissolvesse “os lados obscuros da existência humana” e erguesse a “moral soviética”, reconstruída na guerra contra a barbárie hitlerista. Aqui, a contrapartida da omissão sobre as barbáries de um Presidente doentio, sequer tem justificativas épicas: é a realização das reformas
exigidas pelo capital contra os pobres.

A Sinfonia 10 de Shostakovich, como talvez dissesse Lorca, entraria em cena para cada um, naquela noite no Sodre, “como um fino punhal mouro”. Ou como “se batiam as baionetas de lírios” nas fontes límpidas de Granada, pois a grande arte dói e muda. Toda a grande arte faz doer e mudar. Com a estréia em 1953 -oito meses depois da morte de Stálin- o roteiro meditativo da “número dez”  refletia a solidão do gênio e a denúncia universal do inumano. No desfecho, o autor apresenta-se por inteiro para descortinar em “Allegretto” -finalmente- a ousadia de um futuro redescoberto com nova identidade.

A meditação inicial da Sinfonia faz explodir na memória de todos, sons e imagens recobertas por véus do inconsciente. Eles nos ligam ao tempo presente. Neste, estão horas enigmáticas do passado e tempos futuros: guerras, revoluções, torturas, acordos – dramas da modernidade – nos embriões cálidos das utopias, estas fendas de luz no espírito de cada época. Que existem sempre na grande arte.

Lembro -por exemplo- de Leni Rifenshtal, a cineasta do nazismo, sendo assistida num cinema remoto da Sérvia dilacerada pelo seu “Império da Vontade”, no qual refulgia a força necrófila do nazismo. Mas também recordo “Madame Shangai” -talvez numa Filadélfia fictícia- ópera na qual os estrondosos helicópteros militares da morte com o ‘agente laranja’, estão em fuga do Viet-Nam, cujo povo derrotou e humilhou o Império assassino.

Inevitável lembrar de Fred Mercury cantando “How can i go on” , com a  beleza de Montserrat Caballé,  perguntando “como posso continuar”? quando “todo o sal é retirado do mar e eu estou nu e sangrando?” Ou Evita Perón, construindo as razões morais do “não chores por mim Argentina, eu sou povo e jamais poderei esquecer”. Tempos finais, que ainda não se sabe de quê, tempos iniciais sem horizontes definidos. Neles, o pior e o melhor dos seres humanos vão se moldando nos espelhos da vida.

No brilhante “Textura Crítica da Impostura” (A.C.Pandolfo, Ed. Class,2017, pg.114), o autor lembra uma observação de Benjamin: “Don Quixote mostra como a grandeza de alma, a coragem e a generosidade
de um dos mais nobres heróis da literatura, são totalmente refratários ao conselho e não contém a menor centelha de sabedoria”. O herói espontâneo da emergência da modernidade -com suas utopias- despreza os conselhos dos portadores do obscurantismo medieval. Os heróis fascistas das distopias conservadoras desprezam os conselhos da modernidade democrática.

Nos últimos quinze dias o Presidente Bolsonaro se superou: humilhou a dor de mães e filhos que perderam vidas no regime militar, debochando do Presidente da OAB, Felipe Sana Cruz, filho digno e centrista moderado, que perdeu seu pai – revolucionário digno deste nome – sem conhecê-lo; zombou da ciência e da técnica; chamou de traidores da pátria quem não concorda com as suas loucuras; e disse, taxativamente, que não tinha estratégia e que ele – Presidente eleito do país – “é assim mesmo”. Como se ele fosse apenas um chefe de esquadrões de extrema direita, que velam em rede pelo seu antigoverno de destruição nacional.

Se o inferno existe ele é a naturalização do mal absoluto, que comandará, na consciência dos seres humanos, a irrelevância do sofrimento do outro. É isso que está sendo preparado aqui no país, com a total cumplicidade da mídia tradicional que “faz de conta” que não vê a gravidade do que está acontecendo, porque ela é também responsável pelo desastre que ocultou a hidra do fascismo, com a tese de que se tratava – na disputa eleitoral – de escolher entre “dois extremos” .

Sua representação política mais expressiva está na fala – se verdadeira – desse espécime humano desprezível apontado como “chairman” do Banco Itaú, quando diz que as reformas não serão prejudicadas pelas falas do Presidente. Sua fala não desmentida mostra, como diz Bauman, que no interior “da densa rede mundial de interdependência global não podemos estar seguros de nossa inocência moral, sempre que outros seres humanos sofram por falta de dignidade, miséria ou sofrimento.”

Até quando as classes dominantes do país aceitarão a loucura destrutiva em nome das reformas, até onde vão as agressões à Constituição e o desprezo pela política democrática, pela ciência, pela educação; até onde vai o império da vontade pessoal de um insano contra o bom-senso, até onde vão continuar demonizando a esquerda para tentar esconder a sua incompetência elitista – disseminadora da violência – não sabemos. Mas sabemos que as portas do inferno, se este existir, já estão abertas
pelo mal absoluto: atualmente ele responde pelo nome de Bolsonaro.

(*) Tarso Genro foi Governador do Estado do Rio Grande do Sul, Prefeito de Porto Alegre, Ministro da Justiça, Ministro da Educação e Ministro das Relações Institucionais do Brasil.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.

 


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