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9 de junho de 2019
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20:05

O piquenique austro-húngaro e Lula fora da cadeia

Por
Sul 21
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O piquenique austro-húngaro e Lula fora da cadeia
O piquenique austro-húngaro e Lula fora da cadeia
Foto: Reprodução/BBC

 Tarso Genro (*)

A situação atípica que estamos no Brasil – vivendo no ciclo político de domínio do capital financeiro sobre a totalidade do Estado – nos obriga a recorrer a exemplos históricos mais próximos, para entender melhor este novo mundo vivido. Os exemplos, se não nos ajudarem a entender melhor o presente, pelo menos nos estimularão a evitar os paralogismos (sofismas não dolosos), tão comuns aos raciocínios políticos em momentos de crise.

A aliança política que dá sustentação a Bolsonaro – mídia oligopólica em busca da reforma da previdência, “lumpen-burguesia” representada pelo “velho da Havan”, alta burguesia rentista, religiões do dinheiro e classes médias altas vinculadas ao “rentismo”- (esta aliança) se é possível que em tempos irracionais seja organizada pelo pensamento único (como ideologia), em tempos mais “normais” é racionalizável como materialidade econômica por um novo pacto de poder.

A recomendação básica está clara no exemplo “macrista”: redução radical do que é público”, arrocho orçamentário, manipulação da informação e repressão violenta, quando necessária: semeadura da fome, da desordem nas instituições democráticas e desperança na política.

Nesta hipótese “macrista” – também bolsonarista – a hierarquia burocrática do Estado não é mais um “inferno”: ao contrário, o inferno do capital financeiro é transformado na própria hierarquia burocrática do Estado, que desaparece como ente público. Ele, capital financeiro, passa a ser a “burocracia do inferno” criado pelo ultra-liberalismo, para operar a gestão da dívida em nome do “rentismo”.

Adorno, escrevendo a Horkheimer – ao falar sobre o artigo de Pollock “Capitalismo de Estado: suas
possibilidades e seus limites” – profere a seguinte sentença: “Eu posso resumir as minhas opiniões sobre este artigo (de Pollock), dizendo que ele representa uma inversão de Kafka. Kafka representou a hierarquia burocrática como um inferno. Neste artigo, o inferno é representado como uma hierarquia burocrática”.

Temo que o “inferno” de Adorno, nos dias que correm, embora tenha vida curta – como está configurado pela precariedade dos interesses da aliança que o sustenta – pode ter uma estrutura racional de poder muito semelhante ao fascismo hitlerista, para estabilizar-se – mais tarde – fora de qualquer parâmetro democrático.

A aliança original das forças políticas que golpearam a Presidenta Dilma vai do fisiologismo histórico às milícias – dos velhos e novos políticos tradicionais ao “centrão” clássico – mas todos hoje são reféns da mídia oligopólica que os centralizou a partir da ideologia do caminho único. E esta continuará apostando em Bolsonaro (ou com ele sendo tolerante) até que a “reforma” esteja pronta. Ou, se ele não a garantir, ela mesma irá ejetá-lo do poder sem nenhum tipo de gratidão pelos serviços de desmantelamento da Constituição de 88.

Em Sopon, na Hungria, às 15.00 hs do dia 19 de agosto de 1989, um cidadão chamado Otto von Habsburg, herdeiro da monarquia austríaca, e outro chamado, Imre Pozsgay – que promovera dentro do PC húngaro uma crítica da ocupação soviética de 1956 – estão juntos. Pozsgay é  defensor – no Politburo do PC húngaro – da abertura das fronteiras do país, para que este saltasse fora do Bloco Soviético em afundamento e ambos promovem o que chamam um piquenique “Pan-Europeu”.

De um lado da fronteira com a Áustria, os húngaros atirariam petiscos aos austríacos e (do outro lado da linha fronteira) os austríacos responderiam com as mesmas “armas”. A fluidez na fronteira austro-húngara permitiria, finalmente, que se abrisse livremente o trânsito de alemães orientais pela  Hungria,
dando a milhares de alemães – alienados da Europa pelos ouvidos da Stasi e a rigidez stalinista de Honnecker – a oportunidade de fugir sem os riscos da saída pelo “Muro de Berlim”. Mais ou menos como se o governo do México conseguisse fazer uma ponte de Sonora diretamente para Nova Iorque, sem o controle de papéis: Trump não teria condições de colocar os “chicanos” em Campos de Concentração.

A aliança dos Habsburgs com os liberais do PC Húngaro revelou novas possibilidades políticas de expansão do modo de vida e das relações capitalistas no continente europeu que, se permitiu abrir relações de confiança política entre os que lutavam pela democracia nos países do Leste, de outra parte também demonstrou as radicais diferenças de interesse, entre os aliados daquele tempo: a  maior parte das populações do Leste, que queriam liberdades democráticas e transparência do Estado, e os capitalistas do mundo, que queriam novos territórios de reprodução do capital.

Este fato histórico lembra a situação bolsonárica que estamos vivendo, na qual um Presidente desmiolado zomba da nação e seus aliados eventuais o toleram, como certamente os liberais do PC húngaro toleraram  Otto von Habsburg, seu aliado bem humorado no piquenique de Sopron. Os aliados de Bolsonaro começam a refluir em massa – dos artistas pornográficos aos cineastas anestesiados, dos jornalistas vendidos aos que se enganaram com sinceridade – seu exército se desfaz.

Quem substituirá os  aliados de Bolsonaro na solidão mortal do seu fracasso? O Presidente já deve estar refletindo sobre isso e suas milícias – virtuais ou reais – já devem estar pensando em algo. Se as classes dominantes brasileiras tivessem um mínimo de lustro burguês – como os aristocráticos Habsburgos – tirariam Lula da cadeia para que ele comandasse a construção de um contrato social renovado no país,
a partir da Carta de 88. Poderiam evitar o fantasma brutal de uma divisão irrefreável do país, que será mais bloqueio, este talvez irremovível, à construção da nação.

(*) Tarso Genro foi Governador do Estado do Rio Grande do Sul, Prefeito de Porto Alegre, Ministro da Justiça, Ministro da Educação e Ministro das Relações Institucionais do Brasil.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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