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23 de junho de 2019
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14:02

A noite dos desesperados, o cinismo e a libertação de Lula

Por
Sul 21
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A noite dos desesperados, o cinismo e a libertação de Lula
A noite dos desesperados, o cinismo e a libertação de Lula
Lula. (Foto: Reprodução/The Intercept)

Tarso Genro (*)

A História não se repete, mas ela cria espectros do passado na intensidade do presente. No presente, que contém o antes e o depois, as forças se medem na transparência da política democrática ou na clandestinidade das relações reais de poder. No presente de hoje já se sabe que – independentemente do ocorrido antes – o passado que emergiu dos escaninhos da delinquência no Estado – que teve a gravidade de eleger um grupo de insanos para nos governar – torceu o Brasil para o fascismo miliciano e para a expertise do encobrimento de crimes de Estado.

Estamos na “Grande Depressão” dos anos 30 nos Estados Unidos. Milhares de famílias que perderam suas terras para os bancos, que perderam seus empregos nas indústrias falidas, que viram seus pequenos
negócios ressecarem na “quebra” de 29, perambulam nas estradas em busca de pequenos serviços. De ofertas de trabalho precário, de alguma ajuda do Governo para sobreviverem para comer, para vestir algo sobre seu trapos pobres e para prover-se de alguns trocados da filantropia. Em busca de sobreviver, mesmo sem dignidade, sem luz e sem porto definido de repouso.

Isso está representado num dos maiores filmes do século passado. “As pessoas são o espetáculo final” neste romance de Horace Mc Coy (“They Shoot Horses Don´t They”), filmado por Sydney Pollack – um dos filmes emblemáticos das crise do capital – sobre mesmo ambiente histórico da saga americana, que John Steibenck retratou no seu “Vinhas da Ira”. Neste, Steinbeck inicia o seu capítulo mais lancinante dizendo que “as terras do oeste se agitavam como cavalos antes do temporal”. É o temporal que desabou sobre a América, o mesmo que desaba sobre qualquer nação, sobre qualquer povo, sobre quaisquer corpos humanos que vivem do trabalho duro, nos campos, nas minas, nas fábricas, onde o capital reúne novas forças para um novo salto de acumulação e poder, sobre os escombros deixados pelo medo e pela fome.

Na “Noite dos Desesperados” – título do filme no Brasil – picaretas das promoções de festas, simples gerentes de clubes ou “executivos” de negócios voltados para o lazer, promovem vários tipos de concursos: pequenos “big brothers” da crise de 29, entre os quais – por exemplo – bailes onde as pessoas são pagas para dançarem até onde aguenta o corpo estremecido, em troca de algum dinheiro. Num destes bailes – que começa com alegria e onde cada par esbanja vocação para o sucesso – os casais vão paulatinamente transformando seus movimentos de dança em lentos rituais de zumbis vencidos pela fome e pela submissão.

Os bailes são uma espécie de “adiantamento” a prestação das religiões do dinheiro que, com o tempo e a crise, vão se apropriando do que dizem ser a “Palavra do Senhor”, já transformada em valor que não paga impostos. Dinheiro roubado dos mais pobres e mais fracos que entregam a alma, o corpo exausto, as economias, para os que mercadejam  “indulgências” pós-modernas e garantem um lugar -não ao lado do Senhor – mas ao lado dos pastores da fé manipulada. As classes dominantes tradicionais sabem que podem ser substituídas por exércitos de bandidos armados nas milícias, mas podem aceitar este destino, desde que lhes deixem em paz nos seus condomínios fechados que os separam da guerra civil não declarada.

É o baile do cansaço de viver, da desesperança que pode levar à triste morte escolhida como desejo de vencer que lhes venceu. Na cena inicial do magnífico filme (1969), estrelado por Jane Fonda e Michael Sarrazin, uma tela cheia recebe um magnífico cavalo que percorre rápido uma campina, na qual ele tomba ferido de forma tão grave que deve torna seu sacrifício obrigatório. “Mas eles não matam cavalos, matam?…”. Sim, para que eles não sofram a dor e a inutilidade de viver um destino que um ser humano viveria, no qual – para ter uma sobrevida – seria preciso sufocar o amor e tornar-se pedra, ferro,
metal duro de uma existência sem afeto e sem destino.

O baile do cansaço infinito é o retrato, portanto, de uma sociedade doente que – para recuperar-se e manter-se pacificada – precisa se apropriar do corpo e da subjetividade dos explorados, para sugar deles não somente seu sangue enfraquecido, mas os últimos resíduos das suas mentes livres. É o baile do ritual fascista das religiões do dinheiro e dos agentes financeiros ensandecidos pelo lucro sem trabalho.

O baile do cansaço infinito é o baile da manipulação dos processos judiciais de Moro e Dallagnol, desmascarados pela própria arrogância descuidada, certeza de impunidade promovida por uma mídia tradicional que lhes vendeu como se ambos estivessem “lutando” contra a corrupção. Na verdade – hoje está provado – estavam integrados com os “americanos” para desestabilizar a democracia no Brasil, usando para isso um falso combate corrupção, seletiva, medida, estruturada para afastar Lula da corrida presidencial.

Nos grandes contenciosos políticos da História – em todos os lados – proliferam ódios e cinismos e é sempre um dever de todos os que defendem a razão, a emancipação humana, a igualdade e a democracia, denunciar os cínicos e os odioso de todos os quadrantes. Pretender, todavia, equiparar os assassinos da razão, os promotores  do fascismo, os corruptores da democracia, os bonecos da mídia oligopólica, com quem foi assaltado na sua liberdade pelos assassinos do Estado de Direito, é escolher a neutralidade ativa que considera irrelevante de que lado está fascismo. Libertar Lula é abrir uma clareira da razão contra o ódio manipulado que vem devastando o país.

(*) Tarso Genro foi Governador do Estado do Rio Grande do Sul, Prefeito de Porto Alegre, Ministro da Justiça, Ministro da Educação e Ministro das Relações Institucionais do Brasil.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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