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26 de abril de 2019
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15:49

Novas e velhas políticas na linguagem da dominação

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Novas e velhas políticas na linguagem da dominação
Novas e velhas políticas na linguagem da dominação
A lógica discursiva de Bannon, com seu populismo de direita, apoiado pelos enunciados de Hayek e Von Mises, transitam misturados na mídia tradicional. (Reprodução/Youtube)

Tarso Genro (*)

Se quisermos lutar unificados e com mais eficácia contra a degeneração em curso do nosso sistema democrático é importante compreendermos o discurso legitimador da ordem autoritária neoliberal no Brasil, que está marcado pelos dogmas neoliberais mais expressivos. Eles exigem certas liberdades políticas para sua implementação, ainda que estas sejam exercidas principalmente no topo da sociedade. Estas liberdades devem ser combinadas com discurso de ódio contra os excluídos e miseráveis para convencer a maior parte da sociedade que os pobres não “merecem” um Estado Social. É a lógica discursiva de Bannon, com seu populismo de direita, apoiado pelos enunciados principais de Hayek e Von Mises, que transitam misturados e de forma apologética na mídia tradicional.

Um artigo recente de Agnès Heller (“Other News”) é um sopro de luz sobre o fim possível, da identidade democrática da humanidade fragmentada. No seu texto “Por que a Hungria se rende a Orbán?”, a autora do “Cotidiano e a História” avalia os motivos “da ascensão do primeiro ministro húngaro” (…) “reeleito por três vezes consecutivas com um discurso centrado na etnia e no medo aos imigrantes”. Um discurso do medo sobreposto à valorização mitificada da unidade nacional.

Nas eleições da Hungria as oposições “professaram” – entre si – “um ódio mútuo”, em que “os mais pobres – os perdedores – como por exemplo a maioria dos ciganos”, escolheram a Viktor Orbán, ao final eleito dentro dos padrões da democracia política vigente. Agora, na Ucrânia, foi eleito um comediante sem tradição política e de gestão pública, com mais de 70% dos votos e o seu programa de Governo foi composto pelas suas piadas sobre o poder presidencial. É a perversão final da democracia, cometida pelos que a pervertem, não mais nas sombras, mas na transparência da cena pública?

Agnès rejeita as designações tradicionais para o regime húngaro: regime “fascista”,  “autocracia”, “estado mafioso”,”nacional-socialismo”, são termos que não o definem porque – confessa – não contém parâmetros adequados para compreendê-lo a fundo. Provisoriamente ela designa-o como “tirania”, uma tirania da pós-modernidade, consentida e provocada por uma mutação civilizatória que criou condições muito específicas para acolher e cevar um tipo especialmente monstruoso de político.

É o erguimento de um período histórico onde palavras e as categorias políticas da modernidade madura perderam o seu sentido: “república”, “interesse público”, “delegação política”, “socialdemocracia”, “socialismo”, “liberalismo”, “comunismo”, “fascismo”, já não tem mais o mesmo significado. E, portanto, não falam mais com as pessoas subjugadas no cotidiano do mercado e acossadas pela sobrevivência imediata, onde o principal inimigo é o estranho que disputa comigo as migalhas obtidas na precariedade. Pensar a Coréia do Norte como “comunista”, acusar Bolsonaro de ser “fascista”, dizer que Fernando Henrique não é “socialdemocrata” e que Macri é “tabelador” de preços, não diz mais nada à ampla maioria das pessoas, agora escondidas nas bolhas virtuais ou na solidão da miséria compacta que cerca as suas vidas.

É um momento histórico doentio, não só de fragmentação insana do pensamento crítico, como também dos riscos do seu isolamento político radical. A razão fenece e a dor de estar vivo -para a maioria- se compraz na violência prometida contra os que incomodam o seu sono letárgico, em busca de uma compensação consumista. O mundo hoje é uma crisálida que contém algo de monstruoso em germinação e não se tem ideia o que é pior: a dúvida de como resistir para que deste ninho escondido de vida não nasça a perversidade perfeita ou a raiva de não ter compreendido o que vinha pela frente.

Tentado a tratar destes temas de forma contínua adquiri o costume de ir separando – por intuição – artigos, anotações de entrevistas, e notas que faço, sobre diálogos dos comentaristas políticos da grande mídia. Penso que os mais competentes destes, são dotados de uma imparcialidade estudada que não consegue nem pretende esconder as suas simpatias liberais. E a parte mais séria deles jamais fala defendendo explicitamente as “ideologias” ou “facções políticas”, que integram na surdina da sua profissão. Aparentemente sustentam-se em posições “técnicas”, com uma postura desembaraçada que vem da cultura da informação do “prato feito”, servido pelo oligopólio da mídia.

Esta postura lhes permite determinadas concessões à pluralidade, desde que não seja abordada a essência dos problemas em debate: ou seja, quem morre ou quem vive, no fim de um “processo político” – como é por exemplo o processo da reforma da previdência -; quem aumenta a fome, ou quem se abastece de mais comodidades no futuro, quando chegarmos aos “fins” prometidos pelas reformas; sob a sombra de qual Constituição estamos debatendo e qual foi o pacto político que a gerou, como Carta dirigente da nossa vida pública e limitadora dos nossos “vícios” privados, para uma vida comum solidária?

O fragmento de uma entrevista que guardei de Jessé Souza restaura, em parte, o sentido para o debate sobre “fins e meios” ou -quem sabe- alerta para um confronto entre o Código Penal e o Legado de Maquiavel. Colocando-se dentro de uma “ética da suspeita”, o brilhante Jessé diz: “eu sempre acho que as coisas nunca são como as pessoas dizem que são (…) porque o mundo não pode ser verdadeiro, já que é injusto. Se é injusto precisa ser legitimado e, para legitimar a injustiça, tem de mentir. Uma mentira convincente.” Na ótica das diferentes posições políticas sobre o que é “justo” ou “injusto” (verdadeiro ou não), socialmente justificável ou “maldade” de facção, a instauração da desconfiança ou da dúvida – inclusive sobre os próprios argumentos – é o ponto de partida para a legitimação democrática. Nesta, nenhuma solução se legitima para si mesma, mas o faz para o acolhimento da comunidade a qual ela se reporta. Assim, a desconfiança é a vacina contra a perversão do humano, contida em cada um de nós.

Sigamos. Registro um outro fragmento de entrevista – desta feita de Contardo Calligaris (GaúchaZH, 25.04)- cujo título é “Vivemos uma onda de psicopatia no país”, na qual ele beira o risco de formular uma receita de autoajuda: “A esperança de ser feliz também é uma forma de transcendência. A única vida interessante é a vida que acontece aqui e agora. Não precisa ser épico, não precisa ser  extraordinário, não precisa nada. Precisa da presença efetiva de quem está vivendo”.

A frase, que num tempo sem exigências épicas de parte dos seres humanos – como o é numa revolução, na catástrofe que chama à solidariedade absoluta, no momento solidariedade contra um aniquilamento coletivo – (a frase de suposta autoajuda) destinada a humanos em sofrimento e editada no país em que os psicopatas compõem uma “onda”, torna-se um poderoso instrumento de resistência! Num país dominado pela “psicopatia”, a verdade de tentar ser feliz é revolucionária, pois sem manter a felicidade não há resistência nem projeto de reconstrução de uma vida democrática autêntica.

Mas é difícil. A insanidade está á solta. Nesta quinta-feira pela manhã na Globo News, Burnier, Otávio e Julia, conversavam novamente sobre a reforma da previdência que vai redimir o Brasil. Eles a defendem ardentemente e alegam que, se não for aprovada, “preparem-se para o caos”. Mas já previnem: “não se iludam”, os resultados virão daqui a dez anos, sem milagres, e quem vai aproveitá-la como critério de bom Governo será o sucessor do sucessor de Bolsonaro, prometendo assim – para chegarmos paraíso do trabalho mal remunerado para todos – um “plano decenal” neoliberal.

É um plano digno dos grandes “saltos para frente”, hoje com algumas peculiaridades que permitem combinar os sacrifícios de quem chega pobre no mercado, com a expectativa de um futuro remoto de fartura e glória, quando todos estaremos mortos. Os mortos. Estes certamente ficarão no caminho, pois o presente da maioria não faz parte da História: nem suas dores, sua fome, nem seus gritos à margem da vida, pois afinal estamos aqui comparando – dizem Julia e Otávio – a “nova” e a “velha política”.

O pressuposto deles é que o Governo Bolsonaro – independentemente da consciência dos seus protagonistas – é portador das possibilidades da “nova política”, com as suas milícias, homofobias, destruição da educação pública e corrupção, violência contra os diferentes, mas precisa de “alguns ajustes”. Que regime é esse, dentro da “lei e da ordem?” Julia discorda um pouquinho, o que permite a Otávio brilhar e fazer a grande revelação, que diferencia a “política” (boa) e a “velha política”.

Como? Aqui deste lado “está Maquiavel”, diz Otávio: “isto é política”; do outro lado está o Código penal, prossegue Otávio: “isto é a “velha política”. O que Otávio quer dizer é que, na verdade, se retirados os ilícitos penais dos “meios” – pressupostos para alcançar determinados fins – tudo pode ser aceito. É uma concepção que transforma a complexa filosofia política de Maquiavel numa ajudância mal enjambrada das reformas liberal-rentistas.

Qual o fundamento fático que está na base desta fundamentação otaviana, com suas alarmantes simplificações da economia e da vida (dos outros)?  Vale a pena discutir isso porque é um cruzamento emblemático de ideias submetidas à população, não pela autoridade de quem as expressa, pois este apenas repete o senso comum do neoliberalismo, mas pela sua recorrência nos discursos do novo regime.

Numa outra publicação da minha coleção amadora, está a resposta de Paulo Guedes (UOL – 27.03.19) – este sim autoridade – que ajuda a tese de Otávio, como teórico popular do maquiavelismo pós-moderno: “Encargo social e trabalhista são armas de destruição do emprego, diz Guedes”, durante um debate sobre a situação fiscal dos estados. No país em que o desemprego já sobe para 12% e atinge 12,7 milhões de pessoas, conforme o IBGE, temos que avançar muito mais – parece dizer Guedes – já que para ele as conquistas sociais mínimas do mundo do trabalho no Estado Social são excrescências, cuja anulação se torna “meio” para chegarmos a um novo tipo de Estado. Um Estado inteiramente submetido à lógica perfeita do mercado, que na verdade são crimes continuados que não querem dizer seu nome, porque alguns chegam no mercado com meio salário-mínimo e outros com meio bilhão!

Não de forma inadvertida Paulo Guedes já havia sido celebrado dia 4 de janeiro (2019) num editorial de Zero Hora, da seguinte forma: “Uma janela para o desenvolvimento: Paulo Guedes cercou-se de cérebros de primeira grandeza, que trazem um novo oxigênio para a gestão da economia do Brasil.” Será Otávio um deles? Não creio. Este é apenas um apologeta. Simples assim: o homem que assevera ser a proteção social e trabalhista, não formas humanizadas de organizar a produção capitalista, mas armas de destruição do emprego; não meios de eliminar a escravidão, mas obstáculos à produção -este homem- pretende, como gênio que é, acabar com as conquistas sociais da modernidade industrial e fazê-la voltar à escravidão seletiva do mercado perfeito.

A metodologia otaviana de abordagem dos direitos – portanto da Constituição – invocando Maquiavel e dizendo que vale tudo para aprovar as reformas, desde que não ofenda o Código Penal, é criminosa politicamente e juridicamente primitiva. O Código Penal junto com o Código Civil não são estatutos de regulação do que são atividade políticas lícitas, mas apontam, viabilizam, classificam ou punem, os atos que obstruem uma vida coletiva com direitos iguais à vida, à propriedade, à liberdade de empreender e trabalhar. As normas que traçam os limites e impõem a conexão entre “fins e meios” – para chegarmos a fins políticos lícitos – estão descritas não no Código Penal, mas no Preâmbulo da Constituição Federal, que se realizada em cada norma da Carta.

E estas declaram  e regulam o império do Estado Social para a instituição “de um Estado democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça, como valores supremos de uma sociedade pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social…”. Os “meios” para alcançar os “fins” na política, apontados por Maquiavel, só são lícitos se os seus fins não agredirem a Constituição concreta do Estado, cujo filtro interpretativo é o seu Preâmbulo. Se agredirem, destruirão a relação pactuada pelo Poder Constituinte democrático que lhe deu origem, pois o Preâmbulo traça os limites entre as políticas legítimas e as ilegítimas e – consequentemente – entre o direito à desobediência e o acatamento à Lei e à Ordem, para usar uma expressão cara a Dahrendorf.

O vale tudo otaviano é a síntese das nova tiranias como a de Orbán, que retira a sua legitimidade do convencimento hipnótico da mídia sobre os desgraçados, mas, faça-se justiça, não é dele como jornalista e “cidadão de bem”. Ele, como tantos outros, apenas espelha o senso comum do golpismo sem projeto, que reflete os novos cânones da decadência democrático-social, que aqui finalmente encontrou  seu objeto: as reformas que matarão direitos fundamentais e revogarão, de fato, o Estado Social de 88.

Boris Cyrulnik num diálogo com Edgar Morin (“Diálogos sobre a natureza humana”) aponta de forma profética a nova condição da tirania pós-moderna, acolhida com normalidade pela maior parte das elites empresariais mundiais, com seus aparatos políticos e de comunicação:

“Outra grande estratégia do perverso consiste em esconder-se mostrando-se a plena luz do dia. Com efeito, muito frequentemente os maiores perversos se encontram em grupos de defesa moral, que lhe servem de refúgio. Creio que  quando se esgrime uma só verdade, esta não pode ser moral, mas ao contrário, é criminosa. E os maiores crimes contra a humanidade foram perpetrados em nome da purificação”.

Um querido amigo argentino, Bernardo Kliksberg, intelectual reconhecido internacionalmente como grande “expert” em desenvolvimento democrático, no seu “Repensando o Estado para o desenvolvimento Social”, formula de forma brilhante – sem os conhecer – um repto aos otávios e aos guedes, que hoje monitoram a vida do povo brasileiro, sugestionados pela mímica das armas do Presidente eleito pelo povo: “a ideia subjacente de que o melhor governo é o “não-governo”, confrontada com a realidade, remete à cáustica observação de uma reconhecida autoridade em gerência: o modelo representa o grande experimento dos economistas que nunca tiveram que administrar nada.”

Talvez apenas seus fundos privados.

(*) Tarso Genro foi Governador do Estado do Rio Grande do Sul, Prefeito de Porto Alegre, Ministro da Justiça, Ministro da Educação e Ministro das Relações Institucionais do Brasil.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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