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18 de abril de 2019
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21:39

A guerra da pirataria liberal: batalha dos prazeres instantâneos

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Sul 21
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A guerra da pirataria liberal: batalha dos prazeres instantâneos
A guerra da pirataria liberal: batalha dos prazeres instantâneos
Paulo Guedes e Jair Bolsonaro (Foto: Reprodução/Instagram)

Tarso Genro (*)

O analista caminha nas margens do Lago Ness para respirar a manhã, atravessando o olhar na cerração que enfumaça o cenário. A paisagem está fechada e nem uma luz tênue atravessa o cinza do inverno escocês. Pode ser um panorama da História – pensa o analista – cujo núcleo luminoso só poderá ser desvendado quando tudo for reescrito no futuro. Distrai-se procurando Nessie, o doce monstro inexistente, mil vezes fotografado, falsificado, amado, rejeitado, para tentar – como diria Borges – fazer uma estória dentro da história. O pescador que se aproxima do analista lhe diz com uma voz grave e fraterna, no seu cumprimento matinal: “cerração que baixa sol que racha!”. Nessie não aparece, mas poderá ressurgir, se refeita à imagem e semelhança projetada pelo seu criador.

A sentença do pescador lhe faz lembrar certos períodos históricos de crise na formação do Estado Moderno. Neles os obscuros – e muitas vezes não previstos – caminhos da política, geram resultados que envolvem o mundo inteiro num turbilhão de indefinições, como o “bater de asas de uma borboleta asiática” criando um ciclone dramático na Califórnia. Cada momento da História condensa – no seu presente imediato – passado e futuro e cada gesto dos seus protagonistas mais ativos traz algo do que passou e daquilo que vai ser. É a gênese da vida nunca repetida, mas desfeita.

Vem à mente do analista a França e a Inglaterra, olhadas daquele limite ficcional da Escócia. Nessie pode ser uma doce invenção turística, mas pode ser criada –também – como um monstro real e assassino. São os resultados que vem do ovo da serpente, com  a imaginação doentia escondida nos porões imemoriais dos sentidos, que assaltam os infernos da consciência. Nessie existe ou não existe? Depende. Seria crível pensar que Churchill, por exemplo, poderia chamar seus liderados a matarem os trabalhistas ingleses, ou De Gaulle dizer “matemos os nazistas que ocupam a França e também os comunistas, anarquistas e socialistas” resistentes? Não seria crível para o passado, certo, mas para o futuro alguém substituindo-os no palco da História poderia fazê-lo.

Nas revoluções do século XVII, o período designado pelos historiadores como da Revolução Inglesa (diz Renato Janine no “O mundo de Ponta-Cabeça”) tem dois momentos culminantes: o primeiro é o fascinante período que está entre 1640-48, comparável ao ano de 1905 na Revolução Russa;  e a seguir, o período que foi visto como o “morno” golpe final de 1688. É o ano em que a ação do Parlamento depôs James II, para a promulgação da “Bill of Rights”, Código que forjou a monarquia constitucional inglesa e fez aflorar sua identidade moderna, predominante até hoje.

O caminho da Revolução Francesa, percorrido entre a queda da Bastilha em 1789 e o Código Civil Francês – outorgado por Napoleão em 21 de março de 1804 – ensejou também ali a criação da nação com democracia política. Foi o fim do absolutismo, na forma da ditadura nacional -monárquica – processo complexo em ambos os países – que instituiu a civilização europeia, tanto continental como “exterior”. Ambas as revoluções se projetaram nos próximos 200 anos como paradigmas da civilização ocidental, ambas vencedoras da Revolução Russa. Ambas – hoje – em crise de identidade como projeto político universal, já que a Inglaterra vira as costas para a Europa e a França só tenta resistir ao derrame neoliberal e a nova tutela da Alemanha.

O que “restou para os vencedores”? – perguntou Eric Hobsbawm num texto clássico, escrito depois da derrocada do Muro (ergue-se outro no México); depois da dominação do capital financeiro globalizado (com a ditadura dos Bancos Centrais); depois do fim da URSS (com a provável repartição sino-americana do mundo); o que restou para os vencedores, com a reprodução infinita das guerras, chacinas nacionais, emergência do nazi-fascismo e de micro-nações que disputam um lugar à sombra para os grupos dominantes locais? O que restou para nós? América Latina e África, que sangram numa Terra adoecida na sua ecologia política, física e moral.

Os dois grandes países europeus que construíram o presente da democracia política burguesa fizeram-no no Século passado, na luta contra o nazi-fascismo. A Inglaterra, apoiada naquele Parlamento que ajustou as contas com Jaime II no Século XVII; a França, lastreada na unidade promovida por De Gaulle – depois da resistência armada dos franceses democratas e comunistas – contra Petain. Era o país forte na regulação dos direitos civis e do direito de propriedade, através do Código Napoleônico no início do Século XIX, que se ergueu na nova República Francesa, agora regada pelo sangue dos bravos da Resistência.

Ambos os países tiveram -nos últimos dois séculos- intensos períodos de guerras nacionais e coloniais, lutas políticas e sociais que passaram por graves instabilidades, mas nenhuma delas destruiu a centralidade do Parlamento na Inglaterra, ou a força consensual e coativa das leis civis na França. São países capitalistas fortes, com democracia política baseada na representação popular – em crise – mas que tem no cerne das suas glórias e tragédias nacionais, a formação do seu “ethos” histórico através da liberdade e da soberania popular.

Aqui no Brasil os analistas da imprensa tradicional – fixados exclusivamente na sua míope visão localista datada pelo golpe que apoiaram – precisaram naturalizar a derrubada ilegal de Dilma, aceitar Bolsonaro como um líder de direita “normal”, chancelar a ideia da morte como remédio para o dissenso político, mudar o sentido da proteção social: precisaram proteger o capital especulativo ao invés de homens e mulheres concretos, bem como deformar a representação popular excluindo Lula das eleições.

Forçaram a demonização da esquerda e do PT para nos dizer agora o seguinte: a justa luta política que se trava no país – nos dias de hoje – é entre o “populismo”, de um lado (sem dizer que ele é de extrema direita e fascistoide) e, de outro, os “liberais” (sem dizer, na verdade que são ultraliberais pinochetistas), que querem promover uma sanidade fiscal, combinada com o aumento da pobreza e do desemprego.

À sorrelfa estariam os militares com preocupações “geopolíticas”, como se estes pudessem ser separados do contexto de luta interna, num Governo que ascendeu ao poder em eleições que excluíram o principal líder político nacional, com o apoio ou a complacência dos militares, do Supremo, do Ministério Público Federal. A crise nacional é muito mais complexa e ela envolve, não somente uma visão de nação, mas uma visão de Humanidade, de Justiça, absorção e superação da herança do iluminismo revolucionário e das trevas da Idade Média.

A crise política que atravessa o país é uma crise do “bloco de poder”, não entre oposição e Governo. Um bloco de poder que não está unido programaticamente e que se formou através de um acordo pragmático para encetar o golpismo. E este acordo não foi entre “populistas” em abstrato e “liberais” democráticos, na economia, como quer fazer parecer o oligopólio da mídia. Ele realizou-se entre ultraliberais autoritários -como Paulo Guedes- de um lado, e a extrema direita autoritária ou proto-fascista, de outro, representada pelo bolsonarismo. Todos os “moderados” estão fora!

O que divide o bloco de poder golpista agora, portanto, não é nem o autoritarismo elitista que caracteriza as duas posições, nem a influência dos militares no Governo, mas a profundidade das reformas e a natureza da articulação política, necessária para aprovar a reforma da previdência e encetar as privatizações. A partição do bloco de poder se reflete na fragmentação das instituições, não é produto destas e – daqui para frente – elas serão, ou os corredores pelos quais transitará a “exceção” como método definitivo de Governo por um largo período, ou -outra hipótese- promoverão a retomada da funcionalidade democrática com base na carta de 88, o que tem impedimentos brutais.

O primeiro impedimento é que, ao contrário do que ocorreu na Revolução Inglesa, nosso Parlamento não se fortaleceu com o golpe, mas se enfraqueceu e se humilhou às necessidades imediatas do reformismo neoliberal, com seus  integrantes – por grande maioria – buscando o poder pela velha ânsia fisiológica, sem acordos programáticos mínimos.

Portanto temos um Parlamento fraco e desrespeitado para que passe por ali uma saída para  crise. De outra parte, ao contrário da Revolução Francesa, não temos um estatuto de direitos políticos e sociais com força normativa e respeitabilidade universal, como o Código Napoleônico, para nos apoiarmos e assim e consolidarmos a democracia por decisões da Justiça.

A desarmonia entre os poderes, a “misturagem” de funções, o aparelhamento das ações policiais pelos distintos grupos que disputam protagonismos, bem como a midiatização da Justiça Penal, substituíram a harmonia entre os Poderes por  um sistema permanente de concorrência entre eles. A maioria dos seus integrantes está neutralizada pela expectativa do próximo vazamento humilhante – verdadeiro ou criado artificialmente – ou do próximo ato de Justiça Sumária, executado pela guilhotina da mídia.

Enganam-se os democratas que vibram com as contradições que enfrentam a PGR e o STF, pois – sobre eles – o que pende hoje, não é uma tentativa de controle político da sociedade para lhes readequar às suas funções constitucionais, mas é qual o caráter da tutela que pretendem exercer sobre estas instituições do Estado, os “pinochetistas” ultraliberais de Paulo Guedes e os proto-fascistas demenciados do esquema de poder da Presidência.

Zygmunt Bauman nas suas “44 cartas do mundo líquido moderno” lembra que “a sabedoria popular antiga atemporal adverte-nos que não se deve contar com os ovos antes de serem postos”, mas a estratégia de era pós-moderna já colocou “os ovos do prazer instantâneo” (…) e temos “todo o direito de começar a contar com eles”: a cultura, segundo Hodson, da “gratificação instantânea descartável”.  Não era só tirar o PT do governo? Não era só colocar o Lula na cadeia? Não era só acabar com as políticas de proteção social? Não era só colocar o exército nas ruas? Não era só colocar técnicos no poder? …e imediatamente seríamos felizes novamente…

A guerra que se instalou no país, com a exclusão também dos gestores políticos tradicionais das nossas velhas classes dominantes – que aliás participaram galhardamente do golpismo – deu ao povo brasileiro a “gratificação instantânea imediata” na política: cindiu famílias, separou vizinhos, já mata à vontade nos morros do Rio e nas periferias do “apharteid” social, bem como desenhou para a juventude pequeno-burguesa uma estética da morte contra os pobres. Esta guerra entre eles nem é, na verdade, para resolver como vão nos tirar da brutal encalacrada que nos meteram, mas é como transformar a agressão aos direitos em pirataria permanente. É isso que provavelmente vai exigir que eles construam uma nova Nessie, que apareça e desapareça no Lago Virtual da nossas vidas fragmentadas, que se esvaem na democracia adormecida. E nas utopias assassinadas como fizeram com Marielle Franco.

(*) Tarso Genro foi Governador do Estado do Rio Grande do Sul, Prefeito de Porto Alegre, Ministro da Justiça, Ministro da Educação e Ministro das Relações Institucionais do Brasil.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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