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24 de fevereiro de 2019
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17:01

Sob o fascismo (II): A ira e o orgasmo de Molly Bloom 

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Sul 21
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Sob o fascismo (II): A ira e o orgasmo de Molly Bloom 
Sob o fascismo (II): A ira e o orgasmo de Molly Bloom 
O escritor James Joyce (Foto: Divulgação)

Tarso Genro (*)

Viver sob o fascismo é uma lição diária de sanidade, paciência e energia política. Porque o fascismo é um modo de vida, uma forma de gestão do Estado e um processo permanente de dissolução de valores, de alteração de significados e de rápida transformação de conceitos no seu inverso: igualdade pode se tornar rapidamente desigualdade social com a unidade no “amor” forçado à nação, tal qual eles -os fascistas- a concebem;  paz social pode se tornar vocação ilimitada para o assassinato dos inimigos ou adversários; e “segurança” pode significar fortalecer algumas milícias contra outras milícias que o Estado não controla ou que não participam do pacto político fascista.

A edição brasileira da Iluminuras (1999) do livro de James Joyce intitulado “Giácomo Joyce” traz uma brilhante apresentação de José Antonio Arantes que nos ajuda a pensar sobre a tormenta da História que ora recaiu sobre nós. Vinte anos depois daquela edição seu efeito é ajudar a viver sob a influência do fascismo e, de outro, criar as raízes da resistência para buscar viver -no futuro- novos padrões de dignidade numa democracia reconstruída, se esta ainda for possível, no qual pessoas como James Joyce possam assumir o risco de “viver como um vagabundo” e, ao fim ao cabo,  produzir obras como “Ulysses”.

“Ulysses” foi livro que interferiu na qualidade de toda a literatura do ocidente, depois de superados os percalços da censura e do preconceito. Não é necessário gostar de Ulysses, é certo, mas é bom saber saber que a sua verve -deseducada e rebelde- inovou a linguagem da literatura do Século 20, assim como Machado moldou o nosso romance moderno e semeou o prestígio da nossa literatura no mundo de então. Ulysses foi considerado um livro imoral e contra os “bons costumes” no período em que foi escrito e despertou a ira dos cidadãos de bem de língua inglesa.

O livro de Joyce, depois do confisco na Alfândega do Aeroporto de Croydon de um exemplar francês (22 dez.1922) – conforme Arantes – teve um diagnóstico fulminante de “sir” Archibald Bodkin, Promotor do Ministério do Interior, pela proibição dele ser editado na Inglaterra. O livro seria “obsceno e indecente”, dizia o Oficial, e assim a Alfândega (estaria) “justificada em se recusar a liberá-lo”. E prossegue: “livros sujos não estão autorizados a ser importados para este país”, embora ele confesse que não lera integralmente o livro, não compreendera o que leu, não tivera tempo nem disposição para ler o livro inteiro. Leu todavia o monólogo de Molly Bloom, logo -como concluiu a apresentação de Arantes- “concentrou-se nos orgasmos de Molly.”

Quase quatro anos depois, em julho de 1926 o crítico Frank Raymund Levis foi proibido, pelo mesmo Ministério do Interior, de importar alguns exemplares franceses de “Ulysses”, bem como lhe foi vedado proferir uma Conferência sobre ele. Uma década adiante, inclusive por interferência de T.S. Elliot, o livro seria liberado pelo Procurador-Geral da época, que suspendeu “qualquer ação” contra o mesmo, inclusive “pela posição” que a obra já ocupava na literatura mundial.

Nem todo o autoritarismo é fascista, mas nem todo o fascista se expressa de maneira clara sobre os seus intentos de controle da alma e das emoções dos súditos. O fascismo exprime as forças animais -conscientes e inconscientes- mais primárias de quem tem acesso ao exercício da força, para impor as suas próprias razões e talvez ele esteja contido -pelos menos como resíduo- no âmago de todos os humanos, motivação originária da sua luta milenar pela sobrevivência da espécie. Mas há uma diferença profunda entre exercitar um ato de autoridade pela força -um impulso autoritário- e apoiar-se numa doutrina legitimadora, para justificar-se como dono da alma e do corpo do outro.

O fascista doutrinário e politizado não tem como limite, para o exercício do poder, a supressão do outro pela morte, a eliminação das diferenças pela tortura da mente e do corpo, por menos ou mais “vagabundo” que ele seja, nos conceitos do fascista, como o foi James Joyce na visão de alguns dos seus contemporâneos. O fascista doutrinário e politizado já sabe, antes de qualquer pergunta, antes de ouvir quaisquer razões, antes de saber a personalidade e a história do presumido adversário, quem deve ser morto, quem deve sobreviver como escravo e quem deve sofrer em silêncio.

De fato, como escreveu há alguns dias um articulista responsável, o fascismo não se combate com flores. Isso é verdade se estivermos falando de um ramo de magnólias, mas, se considerarmos a expressão “flores” como a capacidade de dialogar com todos os não-fascistas, reconhecer nossos erros, ter razões refinadas para convencer, exercer a capacidade de escuta de adversários das nossas ideias e ousarmos ter serenidade na defesa dos nossos valores democráticos  -exercer e produzir uma cultura democrática portanto- poder-se-ia dizer que o fascismo -para ser bem combatido- também deve ser combatido com flores”.

O auto-isolamento arrogante pode nos fazer pensar que somos o último ou único resíduo do humanismo das luzes, num momento em que vários quadros dos nossos governos confirmaram delitos graves que cometeram e que alguns deles, que estiveram nos nossos e no Governo Temer, agora estão no grupo extremista de Bolsonaro. Este auto-isolamento, portanto, pode fortalecer o “espírito” do fascismo que, como se sabe historicamente, também se incrusta em amplos setores empobrecidos das classes trabalhadoras.

A capacidade de exercitar a hegemonia política da grande aliança da mídia oligopólica com a direita conservadora, o ultra-liberalismo e o fascismo miliciano, que redundou na sua possibilidade de prender sem provas o Presidente Lula e iniciar um ciclo de reformas de caráter reacionário -sendo Lula um homem do diálogo, implementador de políticas sociais de amplo espectro e quadro de Estado de prestígio internacional- deve nos advertir  que algo nos enfraqueceu para resistir aos tempos de reação.  Costumamos avaliar, em momentos como este, se cometemos erros de “direita” ou erros de “esquerda”, como se os tempos de disputa pela hegemonia fossem os mesmos tempo de “demarcação” e a sociedade -ao fim e ao cabo- tivesse se estabilizado na eterna luta entre entre burgueses  e proletários.

Norberto Bobbio era um crítico duro do comunismo, mas não um anticomunista. Ele dizia que  a persistência de Gramsci na cultura italiana se devia -entre outros fatores- ao seu diálogo contínuo com Benedetto Croce, que lhe envolveu profundamente na interpretação da questão nacional e no debate sobre a função dos intelectuais, especificamente naquela formação social que era objeto da sua militância socialista. Croce, liberal e democrata -filósofo e historiador- dizia que “como filósofo e crítico, não receio nenhum pensamento, por radical e destrutivo que pareça; e como homem aceito as mais duras provas.”

Creio que devemos pensar que as contradições atuais, que envolvem o ressurgimento do fascismo -como modo de vida e método de Governo- exige que coloquemos hoje a luta entre burgueses e proletários, entre ricos e pobres, entre deserdados e incluídos, como sinais de uma crise civilizatória cujo desfecho pode implicar que -adotada a visão de enriquecimento infinito e seletivo do capitalismo atual- ela ataca a própria viabilidade da sobrevivência do gênero humano. E que o fascismo, nas suas diversas formas históricas, é quem organiza pela guerra o seu desfecho monstruoso.

(*) Tarso Genro foi Governador do Estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, Ministro da Justiça, Ministro da Educação e Ministro das Relações Institucionais do Brasil.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21


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