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16 de dezembro de 2018
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12:35

Escola sem partido = Compêndios com partido: Heidegger e Moro 

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Sul 21
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Escola sem partido = Compêndios com partido: Heidegger e Moro 
Escola sem partido = Compêndios com partido: Heidegger e Moro 
Foto José Cruz/Agência Brasil

Tarso Genro (*)

Nenhum projeto de política educacional foi mais cínico, manipulador e imbecilizado ao extremo, do que o projeto “escola sem partido”. Além de ser nitidamente inconstitucional é de caráter fascista, porque ataca o pluralismo, a liberdade de cátedra e a liberdade de expressão. Aplicado, as regras para a docência transmitir conteúdos poderiam estar sujeitas ao pensamento do Governo e não a uma política de Estado. A possibilidade dos professores mostrarem – por exemplo – numa aula de filosofia, que a experiência mística de “ver Cristo numa goiabeira” poderia ser uma projeção esquizofrênica de uma mente enferma -não uma verdadeira experiência mística- poderia ser proibida, se o projeto fosse aprovado.

Qual o conteúdo do projeto?  Para entendê-lo, basta lembrar o que foram os compêndios de História da Academia de Ciências da URSS, que compunham as “instâncias” de controle do stalinismo. Basta colocar – no nosso brejeiro “escola sem partido”-  o sinal contrário: o “sem partido daqui” é, na verdade, o “com partido” da dogmática religiosa fundamentalista e da violência contra os adversários, declamada pelo candidato vitorioso nas eleições deste ano. A literatura histórica da Academia de Ciências Soviética -autorizada “pelo partido” na era Stalin – foi o “escola sem partido” de lá, com a diferença que o projeto da URSS não mascarava o seu intento, pois claramente só permitia publicar o que partido desejava.

Os compêndios da Academia da URSS poderiam ser considerados produtos de uma concepção formalmente inversa do projeto “escola” brasileiro, mas ambos se pautavam pela mesma indecência autoritária e a mesma pobreza ideológica: enquadramento pelo medo, denuncismo de traição à pátria e ao regime, acusações aos historiadores, professores e demais dissidentes, na era stalinista, que criavam as ilusões de uma democracia proletária perfeita, que só existia na imaginação autoritária dos epígonos do regime.

Sou formado em Direito numa época em que a Faculdade que cursei era de uma Congregação Marista e o nosso Professor de Direito Canônico era um fraterno padre direitista, que quase nos levava a sério como alunos inconformados e não refutava qualquer pergunta. Era em plena ditadura. Numa aula o questionamos porque ele defendia, aqui no Brasil, a ilegalidade do Partido Comunista, se o próprio Papa, encravado na Itália do Vaticano convivia muito bem e dialogava com o Partido de Gramsci, segundo alguns – já àquela época – o pai do “marxismo cultural”. Respondeu-nos o venerando Padre, sem pestanejar: “porque os comunistas italianos são comunistas vagabundos”! Queria dizer com isso que ali, na Itália católica e civilizada, os comunistas não ofereciam nenhum perigo à democracia.

Na época nos rimos muito da sua visão original da história e do que entendíamos ser a sua “confusão mental”, mas hoje entendo o episódio de forma diferente. Suponho que ele estava apenas cumprindo o ritual da ideologia do Golpe, reiterando que a democracia completa não poderia ser exercida por povos “sem maturidade” e os valores democráticos -que estariam doentes- deveriam curados pelos cirurgiões da História, através de atalhos dos especialistas militares. Ao invés de combater frontalmente os valores para ele inaceitáveis  do iluminismo democrático – o pluralismo, os direitos políticos da cidadania, a tolerância com o diverso – nosso amigo, Padre e Professor, explorou a nossa imaturidade e desviou do assunto. Não sei se não estava com medo, mas sei que não teve a mínima coerência como Mestre, que deveria “ensinar” – numa resposta séria – qual era realmente o seu ponto-de-vista sobre o assunto.

Os compêndios do stalinismo revelavam como a burocracia estatal-partidária  queria “se ver”; os métodos e conteúdos do “escola sem partido” revelam como os fascistas – a direita radical ou simplesmente os autoritários de turno – querem que as crianças e a  juventude “vejam” o país em que vivem, independentemente de como ele realmente é. Em ambos, o que existe é um aprisionamento do pensamento crítico dirigido pelo medo: o medo da dúvida, o medo da descoberta, o medo da impugnação pela razão. Os professores e historiadores que não apresentam argumentos minimamente racionais para os seus relatos e não deixam margens de dúvida para os seus interlocutores e leitores, criam aversão nos seus alunos e leitores ou criam ilusões centradas naquilo que pessoalmente creem. Seja a partir de um manual de filosofia, seja através de uma bula religiosa.

Lukács dizia que a “arte dirigida, tal como nós a conhecemos desde o stalinismo (…) cria a ilusão em lugar da realidade”. O  nazi-fascismo, que está muito próximo de nós, cultua a morte do outro diferente, a queima de livros e as engenharias medonhas das câmaras de gás.  A História relatada pelo medo e a  aula encarcerada pela visão dos dominadores do presente, criam mais do que ilusão -faltou Lukács dizer- pois impulsionam também o ódio e o fanatismo, a indiferença pela tortura e pela morte.

Como a “escola sem partido” poderia operar, concretamente, numa sala de aula de História recente? Os professores poderiam mostrar um filme, criticando a morte injustificável do jovem soldado Mario Kosel Filho, num atentado ao QG do II Exército, em 26.06.68?  Poderiam ser mostrados, de forma crítica, os vídeos do Presidente que assume, dizendo-se a favor da tortura, desejando a morte de Dilma, ameaçando de morte FHC -que agora lhe corteja- ou argumentando que a ditadura errou, porque deveria matado 30 mil?  Parece certo que a primeira hipótese seria muito viável, a segunda não, o que aliás afrontaria o artigo 206,I e II, da Constituição Federal e a LDB, Lei 9.304, 20.12.96.

Heidegger – filiado ao Partido Nazista em maio de 1933 – disse num momento de encantamento pelo nazismo que “somente o Führer representa o presente e o futuro da realidade alemã e sua lei. Ponha uma coisa na cabeça: de agora em diante, absolutamente tudo exige decisão e toda a ação, responsabilidade”. Depois da Guerra – perdoado pelos aliados como “irresponsável” pelas suas relações espúrias com Hitler e o nazismo – Heidegger respondeu com a seguinte frase a um jornalista que lhe perguntou, se ele não deveria pelo menos pedir desculpas pelo papel que desempenhou no regime nazista: “mas a quem devo pedir desculpas?”, redarguiu o filósofo.

Penso eu: desculpas, se não à Humanidade, pelos menos aos Professores judeus que ele, como Reitor, ajudou pessoalmente a expurgar das suas cátedras, na Universidade de Freiburg. O filósofo não pediu desculpas! Guardadas as devidas proporções, Moro, que fez da sua jurisdição um palco para um conluio político com a extrema-direita, que queria Lula na cadeia, um dia se desculpará? Se a “escola sem partido” não vingar, os professores de História poderão registrar a verdade de tudo isso, mas, se um dia a “escola” se tornar uma norma de controle do pensamento livre, Moro continuará herói. Sem, pelo menos ter que perguntar: “a quem devo desculpas?”

(*) Tarso Genro foi Governador do Estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, Ministro da Justiça, Ministro da Educação e Ministro das Relações Institucionais do Brasil.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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