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23 de dezembro de 2018
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15:04

Dois Sartoris numa noite suja 

Por
Sul 21
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Dois Sartoris numa noite suja 
Dois Sartoris numa noite suja 
Foto: Joana Berwanger/Sul21

Tarso Genro (*)

Os tempos atuais estão sujos pelo fascismo, mas todos nós vivemos nele, uns como podem, outros como querem. Neste artigo falo de dois Sartoris, dois homens dignos para o senso comum, cujos destinos, um político e outro intelectual, foram reunidos pela minha imaginação. Em 20 de dezembro a imprensa nacional noticiou que hospitais da região Noroeste do RS, restringiram os atendimentos do SUS por falta de repasses do Estado e que, por não terem mais comida para alimentar os doentes, a comunidade e seus parentes organizaram-se  – no seu entorno – para alimentá-los. Certamente as pessoas e famílias atingidas – por esta parte da falência dos serviços estatais  no Rio Grande – não guardaram nenhum júbilo pela qualidade do Governo de José Ivo Sartori. Quarta-feira, dia 21 de dezembro, no entanto – na capital do Estado – a Federasul, órgão de representação política e empresarial do comércio gaúcho, reuniu-se para uma fraterna homenagem ao mesmo Governador, simbolizando, assim, não somente o seu apoio ao Governo que sai, mas também o seu júbilo pelo Governo “corajoso” que foi. Preparatório – segundo eles – de um futuro próspero e feliz para o nosso Rio Grande. Era a visão conhecida daqueles entusiastas com a economia desregulada, desde que seus negócios sejam sempre protegidos.

Se tomarmos o “primeiro dado”, acima mencionado e revelado na crise dos hospitais do Noroeste,  e visualizarmos os demais números do Governo Sartori em quaisquer das grandes políticas que  mais interessam à sociedade – saúde educação, segurança, manejo da dívida pública – seu Governo será conceituado, ao final deste exame quantitativo, como um desastre. Se tomarmos todavia – como medida – o grau de satisfação com o seu Governo da maioria dos empresários do comércio, ele será considerado um  grande sucesso. Se apanharmos em conjunto, estes e outros “dados “de fato” sobre o quadriênio Sartori,  subindo uma “escada” de conhecimento da totalidade da obra “sartoriana”, vamos chegar a um terceiro conceito. Este revelará, em primeiro lugar, que não há uma “obra de Sartori”, mas apenas a tentativa malsucedida de cumprimento de uma agenda de tarefas neoliberais, que foram escondidas na campanha eleitoral, mas cujos processos de implementação deixaram sequelas brutais: déficit de 10 bilhões, com aumento de impostos, não pagamento da dívida pública, aumento da dívida pública e social, salários em atraso (duas folhas), quadruplicação das dívidas na área da saúde, piora dos indicadores na área da educação.

Os dois exemplos – crise dos hospitais e homenagens fraternas de empresários, na verdade, espelham os efeitos reais do “projeto” em curso no país e no Rio Grande, no qual os pobres, descartáveis e remediados, vivem a sua tragédia no presente e os ricos e muito ricos apostam – sem traumas sociais – no futuro que as “reformas” irão ensejar. Por enquanto estes últimos se socorrem do mercado financeiro para acumularem e os primeiros sofrem um enorme cotidiano de carências e faltas absolutas, que  os tornam tristes e miseráveis no presente. Esta aceitação passiva, todavia,  não vem de uma concepção diabólica do mal, engendrada por uma pessoa ou um líder qualquer, mas é fruto daquilo que a direita chama de “marxismo cultural” (no caso ao inverso) tronada peça da estupidez proto-fascista, que deveria ser chamada de “pinochetismo” moral do conservadorismo e da reação política, contra as conquistas socialdemocratas. Fazer a gestão de um Estado falido – aqui, no Brasil e no mundo – como se ele fosse uma empresa tem consequências assassinas para os pobres e descartáveis e é, por isso, uma estupidez, o que não é nenhuma novidade, pois como diz Yuval Harari (no livro 21, Lições para o Século 21): “A estupidez humana é uma das forças mais importantes na História”.

Os “partidos relevantes” do conservadorismo e do reformismo liberal – para usar uma expressão legada por um outro Sartori (o acadêmico Giovanni Sartori) – não são mais aqueles organismos vivos da esfera política tradicional, estruturados formalmente com disciplina própria e previsível. São, hoje,  grandes articulações econômicas e sociais, com suas expressões comunicativas e corporativas, que pautam – pela afirmação ou pela negação – as organizações políticas mais sólidas do centro e da direita, e até mesmo parte da chamada esquerda. Na sua totalidade ou em parte delas, compõem – no jogo da disputa política – grupos de “fiéis” militantes nas redes e uma gama dispersa de  quadros dirigentes mais preparados para implementar uma agenda  rigorosamente centralizada.

Esta agenda orienta, domina, afirma ou controla o pensamento crítico: uniformiza-o em torno da já clássica visão do caminho único, que requer um “partido único” e um “pensamento único”, que se estrutura, agora, de forma diversa das experiências modernas de totalitarismo. Combina hoje, para o seu sustento, a violência da exceção com a persuasão dos valores histéricos da sublimação do mercado.

Esta agenda é que capturou a simplicidade, pelo menos aparente, do nosso Governador Sartori, que teve a coragem de dizer – sempre que perguntado – que apenas faria um Governo simples e ia “ver o que fazer”, ao mesmo tempo que já montava um “staff” conveniente para tentar implementar a Agenda 20-20, o que lhe dava segurança, apoio e simpatia da mídia e das altas classes médias anti-esquerda, que ele passara a cortejar.

A partir de agendas desta natureza, que sempre se sustentam numa prévia sacralização da liberdade de maneira manipulatória (e hoje nas “reformas”) é que os grupos políticos e os demais partidos vão se posicionando. E o fazem  mesmo que ainda guardem certa autonomia e organização tradicional, já em processo de substituição por uma organização ampla – em redes comunicativas tradicionais – bordadas de “think-tanks” financiados pelo médio e grande capital, de intelectuais orgânicos do grande empresariado, de “porta-vozes” selecionados em cada partido, mais os seus  “militantes” menores da internet – estrutura comunicacional substitutiva dos velhos partidos hierarquizados – cuja agenda já é endossada por um partido “novo tipo”, de caráter horizontal, cujo centro dirigente está fora do sistema partidário legal.

Este partido – competentemente – faz a cabeça das pessoas menos interessadas (ou menos inclinadas a pensar) e domina integralmente a pauta política do país. No Brasil, a Rede Globo é o centro difusor desta pauta (gerada no Instituto Millenium), mas no Rio Grande do Sul o seu  centro é a RBS, com a orientação local da Agenda 20-20 e dos seus “especialistas”, sempre “à mão” para oferecerem as suas propostas simplórias – na maioria da vezes inaplicáveis politicamente na democracia – mas convenientes para os ouvidos dos seus contratantes. Elas nunca dão certo, mas reabrem sempre as esperanças das reformas redentoras. Se partirmos do “primeiro dado” (crise dos hospitais), acima mencionado e o levarmos até a cadeia ou “escada” de elementos factuais semelhantes, constatáveis no Governo Sartori – em quaisquer das suas grandes políticas – vamos nos deparar com o fracasso.

Em ambos os espaços políticos – nacional e regional – este partido “novo tipo” realiza de cima pra baixo a lição “gramsciana” de se tornar hegemônico antes de assumir governos, que aliás gestionam -frequentemente – através de terceiros: Brito,Temer, Bolsonaro, Sartori, são exemplos flagrantes, resultados destas novas tecnologias de poder. Mas o figurino não muda: elogio de privatizações (que às vezes fracassam), da redução das funções públicas do Estado, da rotineira desqualificação dos serviços públicos, da defesa do fim de políticas socialdemocratas de redução de danos originários das desigualdades sociais A omissão de dados de governos de esquerda (ou mesmo progressistas) que comprometem as suas teses, o não pagamento da dívida pública, o aumento de impostos somente por dois anos (e o aumento da dívida com a União!), fazem do Governo Sartori um caminhão de entrega de sucatas institucionais.

Giovanni Sartori – o outro – num trabalho de 1979 em que buscou formular uma Teoria do Conceito, primeiro recomenda uma espécie de “escada de abstração” – como diz Luiz Fernandes – “para preservar a coerência lógica dos conceitos em diferentes níveis de análise”, para a aproximação com a verdade. Sartori desconsidera, nesta “escada”, todavia -prossegue Fernandes- uma segunda recomendação, que ele mesmo faz, para melhorar esta proximidade com real: a saber, que tal busca não é unicamente “uma recepção de dados”, pois, se o fosse, as simplificações e o arbítrio apenas confirmariam a tese suposta pelo investigador. Porque a escolha de dados para a formação dos “degraus” da escada  -para chegar ao conceito – às vezes é impulsionada por uma uma visão de mundo que distorce a escolha, permeada por enfoques parciais ou ideologizados do ser humano. Outras vezes, os dados escolhidos são fruto do desconhecimento de situações históricas, que assim ignoram elementos relevantes para contribuir na formação do conceito.

Assim, para compor um conceito sobre a formação social soviética – por exemplo – eu valorizo dados que apenas confirmem o que eu já penso (conceituo), ou seja, que o que ocorreu ali, foi uma “revolução burguesa tardia”. No caso da formação social americana – outro exemplo – eu hipervalorizo o racismo na Guerra de Secessão, não as “plantations” como unidade econômica organizadora da vida do Sul. Com isso posso concluir que o Estado americano  – modernizado lentamente depois desta Guerra – é o que é, exclusivamente porque houve combate ao racismo, através de uma Guerra Civil cruenta.  O conceito definitivo ou mais completo sobre o Governo Sartori, provavelmente vai ficar mais claro daqui a dois, quando o Governo Bolsonaro – se subsistir aos assédios de Mourão – já tiver levado às unidades federativas a mais dramática míngua, a alíquota dos impostos aumentados tiver caído e a RBS e a Globo começarem a dar sinal, novamente, que a crise aumentou – no Estado e no país – por que as reformas radicais e impossíveis ainda não foram feitas por completo. Sem dizer, ainda, onde elas deram certo.

(Aos meus generosos poucos leitores, informo que estarão livres de mim por trinta dias a partir desta data, porque embora não seja empregado deste digno e maravilhoso Sul 21, acho que recomendação da CLT sobre férias é um direito de todo o ser vivente, mesmo que o seu trabalho seja de caráter intelectual. Bom Natal! A todos um Ano Novo cheio de Luz e Paz).

(*) Tarso Genro foi Governador do Estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, Ministro da Justiça, Ministro da Educação e Ministro das Relações Institucionais do Brasil.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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