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20 de outubro de 2018
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15:33

Brasil: encarcerado na ilegitimidade

Por
Sul 21
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Símbolos do nazismo pintados nas paredes da entrada de igreja, em Nova Friburgo (RJ) (Foto: Reprodução/Faceboo)

Tarso Genro (*)

Um conto de Benedetti começa com uma frase lapidar e exclusiva, que soa seca como um tiro de fuzil, numa noite de insônia: “Aquele preso sonhou que estava preso”. Assim vemos o Brasil, os que acreditam na soberania popular e no Estado de Direito do nosso país de hoje. Preso numa malha de manipulação e ilegalidades, detido no impasse do controle da formação da opinião e sofrendo o assédio brutal do fascismo que coloca em pauta a violência e o medo como forma de coerção acima da Lei, a cidadania agoniza. O país inteiro está preso. Uns pelo ódio perfeito que divide, outros pelo impasse da indeterminação sobre o futuro. Os vencedores de amanha governarão um país fendido pelo golpe e reinventado -nos seus instintos primários de rejeição do outro já tornado inimigo – como vestíbulo do fim da democracia e do Direito.

A lava de ódio que escorre nas redes animaliza os comportamentos na disputa política e paralisa um Judiciário complacente com a sua própria morte moral, num futuro próximo. A lava vem do golpe, que não deu certo para os traidores que o promoveram, pois deu vazão privilegiada para a voz dura do “fascio”, que passa ser a solução final para uma inteligência burguesa sem iluminismo e um empresariado escravocrata sem futuro. Sua primeira tarefa é calar os que pensam, quando estes não aceitam suas simplificações brutais sobre um mundo cada vez mais complexo, uma vida cada vez mais universal, uma política cada vez mais constrangida pelo dinheiro.  A democracia agoniza e os seus carrascos confessam nos vídeos, o que seria mais “barato” para assassiná-la: comprar mentiras em série, não para convencer as pessoas da sua veracidade, mas para dar argumentos a quem já foi dominado pelo instinto.

O “discurso do ódio” não é uma questão nova no projeto democrático moderno mais maduro, que se firmou depois da Segunda Guerra Mundial. O “Conselho da Europa” (1949) que tem 47 países membros, sendo 28 deles integrantes da União Européia, definiu, em tese como crime, “qualquer expressão que espalha, incita, promove ou justifica ódio racial, xenofobia, anti-semitismo ou qualquer outra forma de intolerância”,  incluindo a “intolerância causada por nacionalismo agressivo e etnocentrismo, discriminação e hostilidade contra minorias, migrantes e pessoas de origem estrangeira”. A garantia de livre expressão do artigo 10 da Convenção Européia -reconhecida pelo Tribunal Europeu dos Direitos Humanos – considera “questão de princípio” que uma sociedade democrática penalize e proíba as expressões que “espalham, incitam, promovem ou justificam ódio baseado em intolerância”, incluindo, evidentemente, a intolerância religiosa.

O artigo 130 do Código Penal Alemão dedica-se especialmente a penalizar a incitação ao ódio. O artigo 13 da Constituição Portuguesa declara que ninguém pode ser “privilegiado, beneficiado, prejudicado”…”em razão de sua religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, (…) ou orientação sexual”. No Canadá, a incitação ao ódio contra qualquer comunidade “identificável” é crime punido com prisão, de até, 14 anos de cárcere, o mesmo ocorrendo quando a tipificação se dá como forma de discriminação baseada em raça, cor, região, orientação sexual e nacionalidade. Mesmo no Brasil, a matéria não é esquecida pela nossa Lei Penal, pois a incitação ou apologia ao crime estão previstos no artigo 286 e 287 do Código Penal e em outros dispositivos de lei. Recentemente o Parlamento Alemão aprovou uma lei específica de combate ao “discurso de ódio” na internet, pressionado pela evidência do surgimento do discurso nazista, que navegou suscitando ódio aos estrangeiros, em função das crises originárias da imigração.

Pelas suas características históricas, o autoritarismo fascista é, sempre, anti-regime e anti-sistema, seja para desvincular  as garantias individuais dos sistemas de proteção social, tornando estas subordinadas imediatamente  as necessidades do capital, seja para interferir nas liberdades políticas, subordinando-as imediatamente as formas mais brutas de controle estatal da ação política. A morte da sociedade civil, do diálogo democrático, da tolerância e da criatividade dos indivíduos livres, é o alicerce do Estado Total. Ele ora se apoia diretamente na forca burocrática do Estado e dos sistema de poder privado do capital, ora se apoia em movimentos de massa, manipulados para o ódio contra todo o estabelecido: ser anti-sistema não é, porém, ser de esquerda. O fascismo é anti-sistema e reprime a inteligência e a diversidade para reconstituir ou aumentar privilégios, afirmar hierarquias garantidas pela violência e sufocar a voz dos “de baixo”: o fascismo é, completamente, de extrema-direita.

A manipulação milionária na internet, financiada ilegalmente por empresários em favor da candidatura de Bolsonaro, se não sofrer duros corretivos do Poder Judiciário, afundará o País numa crise mais radical do que aquela que ensejou o Golpe de 1964. Teremos um governo aparentemente eleito, que constituiu seu mandato por um duplo sistema criminoso: o primeiro baseou-se na incitação permanente do ódio contra o adversário, escorado na indiferença ou no apoio da grande mídia tradicional; o segundo, por um esquema ilegal de difusão de calúnias, injúrias e difamações pela internet, apoiado por um discurso em defesa da morte do outro, financiado por empresários que desprezam a democracia e escolheram o crime para atacá-la por dentro. Um governo ilegítimo, seja ele qual for, é tudo o que nosso país menos precisa neste momento de crise mundial da democracia e de crise do próprio sistema do capital. O nosso Poder Judiciário vai se suicidar junto com o sistema democrático ou vai erguer sua cabeça e restaurar – pelo menos com certa magnitude – a força normativa da nossa Constituição? É o que a deusa da História nos pergunta, neste momento, apesar das ameaças necrófilas que rolam nas redes, no infinito ciber-espaco onde reina o dinheiro anônimo dos destruidores da razão.

(*) Tarso Genro foi Governador do Estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, Ministro da Justiça, Ministro da Educação e Ministro das Relações Institucionais do Brasil.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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