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5 de setembro de 2018
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19:19

O cão vadio de Mark Twain e o cangaço neoliberal

Por
Sul 21
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Mark Twain e um de seus cães. (Reprodução)

Tarso Genro (*)

Mark Twain gostava de cães.  “Marron” – o “Brown” – era um cão de rua dos tantos que andavam soltos numa cidade longínqua onde Faulkner amarrou as suas novelas ou,  quem sabe, onde eles passeavam para sair do lugar em que foram retidos por Onetti, nas ruas da sua “Santa Maria”, daquela  angustiada novela chamada “Vida Breve”. Em ambos os lugares as pessoas existiam um pouco indiferentes a sua própria sorte, quase solícitas na inevitável solidão de uma História terminada. As pessoas se olhavam e não se viam, o tempo era circular, o mercado estava ali e ninguém o desafiava. As crianças repetiam as violências dos “games” junto a adultos indiferentes e repetitivos.

Não sei onde exatamente ocorreu, mas a estória tem foros de verdade. Ela me foi narrada por um amigo americano e assim como Borges costumava fazer em seus contos mais metafísicos -narrando o que alguém lhe contara em algum lugar do seu mundo irreal- permito-me  como cronista menor, mas menos metafísico, contar esta estória como verdadeira. São fatos de dias que não vivemos, mas mesmo omitindo a fonte posso informar que os eventos são cabíveis em algum lugar solitário às margens do Mississipi, onde estava sendo criada – por descaminhos e contrabandos secretos – a melhor literatura americana. Então são cabíveis em todos os lugares.

A estória conta o seguinte: quando Mark Twain chegava, à noite, para escrever naquele seu último e distante refúgio, começava a cozinhar sua pacificadora carne de segunda com legumes frescos e logo via que “Marron”, o cão vadio da sua cidade-refúgio, se aproximava da cerca vazada, farejando forte com um empinando nariz nada discreto, “como se registrasse algo”, narrou o meu amigo. E então o cão ia embora. “Marron”, porém, voltava no outro dia pela manhã, bem cedo com o sol nascente, esperando o resto do cozido noturno que repousava na panela abandonada. Ele sabia, por instinto de sobrevivência, que ali era um ponto de acolhida, um lugar onde as normas imutáveis da sua naturalidade pura se encontravam com a consciência viva de seres estranhos, submetidos a regras criadas pela vida comum “pensada”.

Mark Twain muito cedo, já sentava para escrever. E sempre cedia a um ritual entranhado no hábito dos dois -animal e homem-  fundidos  num vínculo de solidariedade, cumplicidade na desgraça e afetos interessados. O cão, buscando o seu primeiro alimento, Mark Twain buscando sua primeira palavra. Um, vendo a sua América desmoronar e recriar-se, incessantemente; outro equilibrando as energias para simplesmente viver. A cadeia infinita da reprodução da vida sempre se ergueu -pensava Mark Twain – sobre a palavra que explicitou algo de útil e sobre o alimento que mantém o corpo e a palavra vivos. Mark e Marron, a seu modo, repetiam assim a dança solidária e impossível da vida integral e regrada. Mas era uma vida harmoniosa, que já não mais existia entre os seres racionais e a natureza, que nunca existiu na concorrência pela vida entre os animais, e que os homens jamais conseguiram criar entre si com durabilidade.

Mark se interessava pelo seu país, para que ele “fosse o quê?”, perguntaria “Marron”, se pensasse: um império? um paraíso? uma pátria de Whitman? um inferno da Klan? Saíra um boato sobre sua morte e Mark Twain escrevera: “o relato sobre minha morte é um exagero”. E riu. “Marron” lhe esperava e sabia que o seu amigo não iria falhar, pois já concluíra -na sua instintividade generosa- que se é verdade que o homem precisava da primeira palavra, a inspiração para ela poderia vir de um gesto de encontro entre duas vidas necessitadas: uma, com sede de uma palavra certeira; outra, carente de um alimento vital.

Sempre, como também aconteceu naquele 20 de abril de 1910 (Mark Twain morreria no dia seguinte) aquele homem, que para o cão era apenas uma cabeça enorme com cabelos brancos, novamente chegaria ao portão com um grande osso de pelancas gordurosas. E lhe diria com intimidade e apreço: “Toma Brown, me larga!”. Nos acontecimentos desta história  – disse-me o amigo americano já meio chorando –  está relatado o que foi derrotado do “ethos” democrático da América, que separa mães e filhos na fronteira, que promoveu a tortura clandestina ao longo da sua Historia e que, com a sinceridade dos brutos sem espírito, agora incuba-a no direito penal do inimigo, com a transparência brutal que só os Impérios podem fazer.

Então o ex-jornalista, ex-servidor do governo, ex-mineiro, ex-piloto de barcos no Mississipi, pai da grande literatura americana que fez Steinbeck, John dos Passos, Dreiser, Scott Fitzgerald, Hemingway, Faulkner, Roth e outros gigantes da alma americana,  – então – aquele Mark Twain escreveria a primeira palavra da sua última jornada como escritor. Ela faria jorrar luzes, prantos, pulsões da alma e desatinos literários. Elas brilhariam dos Montes Apalaches à Califórnia dos vinhedos, das neves do Canadá ao deserto de Mojave. E tudo ficaria em paz, por alguns momentos. Paz entre aqueles dois seres vivos que se reconheciam nas suas necessidades diferentes, uma não maior que a outra.

Aquelas necessidades vitais e universais refulgiram na História da Humanidade, ora para quebrar o silêncio interior de um homem grandioso, ora para dormência gostosa do corpo alimentado de um cão. Explodir a palavra pensada e dinamitar a vontade pela fome seria o único remédio – concluiu o meu amigo americano – para desvincular Mark Twain do seu amigo “Marron”. O cão não tem um conceito sobre a morte, portanto “Marron” não está morto e se reproduz como infinitos cães vadios que buscam um acolhimento e que não sabem, também, que muitos milhões de homens não acolhem nem os seus iguais como cães. Por isso, os cães não sofrem, como os humanos, a antecipação do frio e da fome, no seu presente perpétuo. Mas os seres humanos sofrem antes, durante e depois, por isso são enganados para se submeterem.

É isso que o liberal-rentismo, que já recebeu a adesão explícita dos fascistas, está fazendo com as suas propagandas manipulatórias, mentiras repetidas sobre o mercado, estímulo à violência e a criação de monstros, que agridem mulheres e homens pela sua simples identidade sexual, pela sua cor ou por suas escolhas morais. Fazem-no para chegar às  perseguições judiciais que visam manipular a soberania popular. Fazem-no pela intolerância e pelo ódio e bloqueiam entre os homens aquilo que um homem e um cão podem pactuar:  reconhecerem-se como necessários, um na vida do outro, substituindo esta capacidade dada pela vida, pela exclusão da palavra solidária e pela semeadura amarga da fome.

A exclusão da palavra está simbolizada pela brutal lesão da soberania popular, que encarcera um Presidente que não é de gosto do mercado. E a semeadura amarga da fome está nas ruas, debaixo das pontes, nos semáforos das grandes cidades, na escravidão da informalidade humilhante. O país inteiro é uma zona de cangaço pós-moderno, que corrompe não somente o sentido do público e a dignidade da democracia, mas também  implode a solidariedade e o respeito à dignidade humana.

(*) Tarso Genro foi Governador do Estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, Ministro da Justiça, Ministro da Educação e Ministro das Relações Institucionais do Brasil.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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