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22 de setembro de 2018
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20:57

FHC é Jacob Gens, parece já longe da humanidade e perto do fascismo

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FHC é Jacob Gens, parece já longe da humanidade e perto do fascismo
FHC é Jacob Gens, parece já longe da humanidade e perto do fascismo
Jacob Gens (Reprodução)

Tarso Genro (*)

Este é um pedaço da história que aconteceu a partir de 15 de julho de 1943. Foi no gueto de Vilna (Lituânia), envolvendo o ditador do gueto aceito pelos nazistas, Jacob Gens, de um lado, e de outro os líderes da Organização Partisans Unidos (FPO), grupo político-militar clandestino da Resistência. A organização fora fundada em janeiro de 1942, por comunistas e antinazistas – unindo os principais grupos sionistas do gueto e os resistentes patriotas democratas antinazistas- que concertaram a “causa comum” da luta armada, contra os ocupantes. Esta aliança ocorrera depois de complexas negociações para superar as inimizades e disputas de antes da guerra. Itzhak Witenberg, um jovem judeu de 34 anos, fora designado Comandante da Organização FPO, principalmente pelas suas relações com resistentes fora do fora do cárcere do gueto, que então já contava com 20 mil internados judeus.

Gens mantinha o gueto sob seu controle, com frágeis relações com as FPO. Estas “relações” eram destinadas, principalmente, a negociar “entregas” de homens e mulheres resistentes, para os nazistas, intercâmbio que -segundo Gens- estaria evitando assassinatos em massa dos judeus ali encerrados. Em 8 de julho, Gens recebe um ultimato nazi: deve prender e entregar Witenberg, que estava clandestino no gueto de Vilna. É o momento em que Gens convoca a histórica reunião de 15 de julho de 1943, para dar voz de prisão ao dirigente das FPO, a fim de entregá-lo a Hitler. Os nazistas tinham obtido a informação sobre a presença de Witenberg no gueto, após prender e torturar uma célula comunista militante na Vilna ocupada. Os demais líderes das FPO se reúnem e não aceitam, todavia, a imposição de Gens e se preparam para defendê-lo pela força.

Às três horas da manhã Gens convoca os (“shtarke”, os “fortes) que eram marginais do submundo, erigidos à condição de Força Policial do ditador do gueto, para prender Witenberg, que é a seguir surpreendentemente libertado por uma heroica emboscada das FPO, contra a Polícia Lituana: a corporação fora encarregada de cumprir o mandado informal de prisão de Witenberg, já que este após a emboscada teria voltado a se esconder. A situação fica crítica: o Comando nazi, então, informa que, ou entregam o Comandante das FPO ou o gueto vai ser dizimado. O acossado ditador Gens -reconhecendo finalmente a legitimidade da resistência-  manda uma delegação de “notáveis” para negociar a entrega do Comandante Witenberg.

O objetivo, segundo Gens,  seria  salvar “20 mil judeus”. Aqui transcrevo: “Em meio a muita angústia, depois de avaliar todas as outras opções, Witenberg concordou. Depois de encontrar pessoalmente com Gens, ele foi escoltado até o portão do gueto onde os nazistas o esperavam. Era a noite de 16 de julho. Durante aquela noite ele se suicidou com cianeto fornecido por Gens.” (“Forjando a Democracia”, Geoff Elley, pgs. 276, 277, Ed. Perseu Abramo, 2005). Witenberg, ainda que relutante fez a escolha moral possível naquele momento, pois a sua morte certa pelo menos abria a esperança de salvar 20 mil, o que infelizmente não ocorreu.

O dilema de Witenberg foi recorrente em todos os espaços, nações e regiões ocupadas pela fúria nazista. A professora Hanna Lévy-Hass, em Montenegro, era militante do movimento comunista clandestino da Resistência, quando os alemães invadiram sua terra. Hanna -que se preparava para se somar à resistência armada contra os nazis nas montanhas próximas a Cetinge- recebeu uma delegação de três jovens judeus, que lhe fizeram a seguinte indagação: se ela sabia que a sua integração à resistência nas montanhas iria causar uma represália que mataria no mínimo 30 judeus -“costume” nazista- como ela poderia aguentar esta carga moral, por toda a sua vida? Hanna, considerando estes argumentos resolveu não aderir à resistência armada.

Hanna mais tarde foi presa e enviada a um campo de concentração em Bergen-Belsen e sobreviveu, depois de decidir poupar -num momento crucial da sua existência- o fuzilamento de 30 jovens judeus, que seriam vitimados pela escória nazi. Hanna fez uma opção pela integridade moral no cotidiano, mas isso não impediu o sacrifício, a tortura, a humilhação, a morte de milhões, ao longo da disseminação do vírus do ódio racial e nacional do nazismo.  Witenberg optou pela decisão histórica de imolar a sua vida contra o cotidiano. Witenberg e Hanna tiveram as suas razões, mas o que não se pode negar a seu respeito é que eles foram seres humanos que enfrentaram os seus dilemas morais e políticos -com escolhas diferentes- com a estatura épica de gigantes da História. Estes, estão sempre escondidos nos pequenos espaços do mundo, despidos de todo o brilho, sem buscar qualquer recompensa imediata que não seja o reconhecimento infinito do seu amor ao outro humano que lhe cerca.

Mais além das questões de Teoria do Direito, que a academia poderia discutir em infinitos volumes com as discussões intermináveis influenciadas pela análise das relações reais de poder e suas normas de convívio numa comunidade – com a problemática do Direito sendo inspirada pela própria ação – mais além das questões submetidas aos debates intermináveis sobre o conceito de “exceção”, estes exemplos estão linkados à dignidade da política, com a coerência pela qual os sujeitos humanos se comportam no espaço crucial da decisão que os separa da animalidade.  Ali, solitário, o homem é grandioso ou rasteiro. É pobre ou rico de espírito, separa-se ou não da cadeia infinita de reações e combinações químicas, que se erguem mais além da matéria imediata: é espírito e consciência, é sujeito ou é objeto, é luz ou escuridão.

Quando oportunistas de todos os matizes colocam num mesmo plano Haddad e o outro – como se fossem opções naturais que a sociedade vai ter que fazer – deixando de reconhecer que se trata na verdade de uma disputa entre fascismo e democracia, civilização e barbárie, aduzindo como faz não “inocentemente” a Globo, que é uma “luta entre extremos”, a identidade destes é com Gens. Ou é com o Comando Nazista. Não com os heróis anônimos da civilização – comunistas ou não – pois salta às vistas que eles aceitam a barbárie fascista, em nome do ódio que acumularam na história recente.

Eles não são como os jovens judeus que estavam na FPO. Nem com Witenberg e Hanna: são como Gens e o Comando nazi, que acham que os fins justificam os meios. Hanna e Witenberg sofreram – em cada passo político da sua decisão moral –  o peso de estarem representando a grandeza humana e um novo espírito da época. Gens e o Comando Nazista representam os monstros do fim de uma era, que aceitam eleger quem celebra a tortura e não hesitam em matar trinta mil, para impor a sua felicidade regada a sangue e horror.

(*) Tarso Genro foi Governador do Estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, Ministro da Justiça, Ministro da Educação e Ministro das Relações Institucionais do Brasil.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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