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19 de agosto de 2018
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16:46

O Brasil é a Albânia da doença liberal

Por
Sul 21
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Enver Hoxha (Reprodução/www.enverhoxha.ru))

Tarso Genro (*)

No espectro político do socialismo real a pequenina Albânia de Enver Hoxha em 1961 “rompeu” com o sistema soviético – já em crise de recriação de um projeto socialista que fizesse jus às promessas de Outubro – e aproximou-se da China Popular de forma incondicional. Esta “incondicionalidade” durou pouco, pois em 1978 a Albânia rompeu também com a China Popular e deslocou-se para um isolamento completo em termos internacionais. O país voltou ao cenário das relações globais nos anos 80 em condições de baixa capacidade competitiva, humilhado pela falência do seu projeto político e sem nenhum respaldo internacional. O apoio à recuperação albanesa veio dos organismos difusores da sociedade de mercado (financeiro), filantropicamente “compungido” pela situação de um país pobre e  sem perspectivas de integração global com soberania.

Nos anos 90 ao, enfrentar uma brutal crise política e econômica o país obrigou-se a uma “abertura” para os padrões ocidentais de liberdades políticas. Ali, todavia, já fala mais alto a economia: obsolescência tecnológica, baixa produtividade, ineficiência industrial, falta de energia e padrões de exploração agrícola envelhecidos não permitiram o regime  transitasse para uma versão de socialdemocracia capaz de manter livremente – no seu território – os seus trabalhadores que presumidamente estavam no poder. Tanto aqueles mais preparados para as novas exigências da terceira revolução científico-tecnológica, que ali não chegara, como aqueles de média e baixa formação técnica tradicional.

A hegemonia absoluta do capital financeiro na globalização econômica permite uma analogia, entre o que ocorre no Brasil nos dias de hoje  – no que refere a sua forma de integração política no mundo- com aquilo que ocorreu com a Albânia, no fim dos anos 80. Quando a Albânia virou as costas para o mundo, com as sucessivas rupturas com seus “aliados”, URSS e China, ela saiu de uma relação concreta e real com eventuais “amigos” (que mudavam rapidamente os seus sistemas produtivos e a sua integração com o mundo),  refugiando-se numa posição idealizada de expectativa com a “revolução mundial”, que não só não veio como estava -já naquele período- cada vez mais distante.

A Albânia, com seu socialismo dirigido pelos burocratas do Estado Total não se preparou – num mundo que já se mostrava hostil a qualquer ideia de justiça e igualdade – para uma transição a um modelo social, que a mantivesse como nação soberana capaz de dar mínimas condições de vida ao seu povo, numa época assustadoramente dominada por um “rentismo”, sem alma produtiva. É certo, também, que seus homens do Estado e do Partido, não compreenderam  que o seu povo já estava exausto dos burocratas do mito da revolução mundial, que não tratavam das carências concretas do presente.

Nestas condições, os burocratas surdos do país também não constituíram uma elite dirigente democrática, capaz de compreender – na transição que já começara –  que o mercado “absoluto”, não só não levaria automaticamente para a democracia e para o fim da carência, mas na verdade desorganizaria a democracia para eliminá-la e, igualmente, aumentaria a carência para colocá-la a seu serviço. O que na Albânia ocorreu por uma estratégia sem base na vida real do mundo, aqui está ocorrendo por vontade do golpismo em torno da vida ficta que eles criaram pela mídia.

Os  juristas e professores Luiz Moreira, Michel Saliba, Lênio Streck – entre outros grandes – já se debruçaram com propriedade sobre os efeitos do descumprimento pelo Brasil, das recomendações da ONU. Aqui mesmo, neste Sul 21, um excelente artigo do brilhante colega Fábio Balestro Floriano, que uniu o didatismo ao conhecimento técnico do assunto, mostrou que, quando é internalizada livremente uma norma -por decisão soberana do país que pactuou a obrigação de cumpri-la – seu descumprimento é uma gravíssima lesão ao Direito Internacional. Assim, concluo: é um ato de força soberano que desconstitui uma ato livre de soberania, por contingências da política internas. Ou seja, é uma negação da soberania democraticamente exercida, para premiar um momento de juízo de exceção por facciosismo político.

O que na verdade faz o Estado brasileiro, neste momento – para manter o Presidente Lula na prisão e vedá-la como candidato –  é transformar a necessidade em força de “exceção”. E assim como a Albânia descartou seus precários amigos socialistas-burocráticos a sua época e ficou à deriva, o Brasil descarta – através do governo golpista – os precários amigos da democracia, ora representados por esta decisão de ONU, que ainda resistem no cenário mundial. Entrega-se assim, de corpo e alma, para os Torquemadas do mercado financeiro, que não aceitam Lula e o fazem – não porque ele seja um radical ou um “socialista”- mas simplesmente porque ele carrega uma ideia de Justiça para quem tem fome e  para quem acha que aqueles que tem fome, são seus irmãos na terra.

Ao reforçar o autoritarismo e a exceção, mostrando sua indiferença com as conquistas democráticas do Direito Internacional nos pós-guerra, o Brasil torna-se a Albânia da direita: corteja o fascismo na sua versão pós-moderna, controlada e induzida pelo oligopólio da mídia e abandona os seus aliados democráticos do mundo,  que ainda visualizam no nosso país o lampejo de uma democracia que poderia sair das suas crises sem violência e sem o ódio que gera o Ovo da Serpente. Temer é o Enver Hoxha inútil, politicamente impotente desta crise, cuja irrelevância nem  provocou que fosse apeado do Governo, para que pudessem tentar legitimar a injustiça e sacralizar, em definitivo, o mercado das almas do trabalho e o espírito mórbido do dinheiro virtual.

(*) Tarso Genro foi Governador do Estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, Ministro da Justiça, Ministro da Educação e Ministro das Relações Institucionais do Brasil.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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