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8 de julho de 2018
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10:30

Grandeza e perversão da democracia: Ezra Pound ensina pelo erro

Por
Sul 21
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Ezra Pound (Wikimedia Commons)

Tarso Genro (*)

O poeta Ezra Pound (Idhao, América, 1885) começou a escrever seus “Cantos” em 1917, composto por uma sequência de poemas que só foi terminada em 1958, depois que retornou à Itália. Ali o poeta tinha residido durante a Segunda Guerra Mundial, onde fez campanha contra o seu país de origem – como simpatizante de Mussolini – baseado na ideia de que o “Duce” estava em luta contra a “decadência” européia. Foi julgado por traição, em Pisa, quando as tropas americanas entraram na Itália, na primavera de 1945 e após libertado porque foi considerado “louco”, depois de permanecer numa solitária infecta por seis meses, submetido a sucessivos ataques de histeria e terror.

A loucura de Pound, na verdade, foi uma das variáveis que a modernidade revelou, como ideia de uma contra-revolução ao humanismo burguês. Um pensamento político que elaborava contra as reformas e as insurgências socialistas e socialdemocratas, dos mais explorados, que iriam se aprofundar depois da Guerra, época na qual a novas sociedades moldadas na primeira metade do Século XX, passariam a apresentar as suas grandezas e também suas perversões.

A Revolução de Outubro legou a primeira experiência socialista sem democracia política, a derrota de Hitler e depois se transformou numa Revolução Burguesa tardia; a socialdemocracia legou o Estado de Bem Estar, financiado pela acumulação da exploração colonial, e depois a democracia social ampla, sucedida pelo Estado de Direito “global”, que agora se encaminha para um autoritarismo novo tipo, sob controle da força normativa do capital financeiro e das agências de risco. As revoluções se esvaem, a democracia se resseca e os monstros da guerra voltam a sua origem necrófila e violenta.

Uma apreciação em traços largos como esta, porém, esconde o essencial: os homens e mulheres que lutaram, sofreram e morreram, para construir uma humanidade melhor, uma sociedade mais justa, um mundo sem fome e sem guerra, que hoje parece uma utopia menos possível, como a chegada a um horizonte cada vez mais improvável de ser tocado. “Os Cantos”, de Pound, conjunto de poemas que formam um épico sem narrativa cheio de colagens, alusões, linguagens diferentes, ideogramas – uma beleza incompreensível e sem rumo – ilustram estes tormentos. E o fazem mais sobre a consciência de quem pensa que está fora da História, do que propriamente atuam beneficamente sobre a descontinuidade da cultura da ilustração.

Na última entrevista que concedeu, Pound situou-se: “Os exóticos são necessários, como uma tentativa, numa origem. A gente é transplantado e cresce, e é puxado – de novo – para o lugar de onde foi transplantado e já não o encontra mais lá.” O mesmo sentido tem o texto de abril de 2006, do jornalista do “New York Times” – Edward Rothsteine – no seu artigo “Até onde o desejo democrático é confiável”: “Desejamos líderes fortes e os tememos, com razão. Desejamos democracia ampla e, justificadamente, nos preocupamos com suas consequências”.

Pound dissera que o seu lugar, cultural e político, no  qual romantizava o fascismo destinado a colocar nos “eixos” a decadência européia, não mais existia no fim da sua vida. E o linear Edward, nos informa que a democracia ampla pode não valer a pena, porque ela comporta riscos. Ambos, com suas matizes e especificidades, revelam a decadência – junto com a sua pujança e luz – que sempre esteve integrada ao projeto democrático da modernidade. São luzes e sombras de um mesmos universo histórico, cada vez mais superado e cada vez mais revivido.

Quando Ciro Gomes é afrontado com  vaias, numa reunião de empresários onde certamente tem gente honesta, mas também sonegadores e fascistas, só porque disse que a reforma trabalhista deve – em alguma medida – ser revisada; quando Miguel Rossetto é vaiado por uma pequena turba, porque simplesmente diz que o seu candidato à Presidência é Lula, numa reunião de Prefeitos de todos os partidos que estiveram no Governo Lula; quando Lula, vencedor previsível das próximas eleições, permanece preso por um Juiz que, por longo tempo, intimidou – com o oligopólio da mídia – o Supremo Tribunal do país, e Temer permanece golpista e Presidente – quando isso acontece com o silêncio cúmplice da sociedade “culta” e do “bem”-  é porque a crise democrática no Brasil está chegando na sua expressão máxima de decadência.

A crise volta, assim, ao seu lugar de origem, no qual os golpistas que aderiram ao cinismo manipulado no engano e na mentira, não mais a reconhecem. Ela volta ao lugar onde os bloqueios da dominação assumem a nitidez de um raio, que corta a noite que o fascismo está construindo, no subsolo dos piores instintos da espécie: a dominação sem freios, a violência sem necessidade, a política sem virtude moral, a miséria que leva ao crime e destrói as organizações de defesa dos direitos das maiorias, excluídas do festim neoliberal.

Quando se dilacera e se esquarteja a Petrobrás e o pré-sal; quando se oficializa o direito de envenenar – paulatinamente – a comida da população para aumentar o lucro do agronegócio e das multinacionais, estamos sendo informados que sim!, a democracia ampla não vale a pena para os fascistas, os ricos e os autoritários, e que povo, quando quiser de fato voltar para soberania popular plena, verá que ela não está mais lá: foi carcomida pela decadência econômica, pela violência e pelo ódio de classe. Mas a unidade para reconstruí-la, em novas bases programáticas e de virtuosidade política, começa agora, sob pena do abutre neoliberal, não só envenenar nossa comida imediata, mas também o futuro inteiro das novas gerações. Sem luz e sem paz.

(*) Tarso Genro foi Governador do Estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, Ministro da Justiça, Ministro da Educação e Ministro das Relações Institucionais do Brasil.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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