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12 de junho de 2016
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18:00

Ernani Maria Fiori e o coração da democracia

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Sul 21
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Ernani Maria Fiori e o coração da democracia
Ernani Maria Fiori e o coração da democracia
"Metafísica e História" e "Educação e Política" abrangem os grandes debates sobre política, educação e filosofia, nos tempos que precederam o Golpe de 64.
“Metafísica e História” e “Educação e Política” abrangem os grandes debates sobre política, educação e filosofia, nos tempos que precederam o Golpe de 64.

 Tarso Genro

A primorosa edição em dois volumes dos “textos escolhidos” do professor Ernani Maria Fiori, pela editora da UFGRS   (2014), por ocasião do centenário do seu nascimento, é um marco  da qualificada gestão do Reitor Carlos Alexandre Netto e do Vice-Reitor Rui Vicente Opermann. Os seus dois volumes, “Metafísica e História” e “Educação e Política”, abrangem os grandes debates sobre política, educação e filosofia, nos tempos que precederam o Golpe de 64. Filósofo – educador e mestre de mais de uma geração –  o professor Fiori é uma daquelas figuras que, quando identificadas com uma Universidade, uma cidade ou um país, reveste estes espaços da dignidade e da inteligência que caracterizaram a sua frutífera vida. Vida de desafios, lutas pela afirmação do saber, aberto ao diálogo produtivo entre pensamentos filosóficos de distintas origens.

O professor Fiori – está na contracapa do volume “Metafísica e História”-  dizia que a “reflexão livre é uma viagem sem porto (e) tem apenas um horizonte: a esperança”. Modestamente, afirmava que o seu pensamento filosófico “sofreu muitas influências” e “exerceu quase nenhuma”, influenciando apenas “alguns ex-alunos”. A  publicação destes dois volumes mostra, porém, que ele continuará formando e influenciando pessoas e que, no momento que atravessamos uma das maiores crises políticas da nossa jovem democracia, a transmissão do seu saber é mais do que meramente necessária. É imprescindível. O expurgo do professor Fiori da UFRGS, foi um ato de brutalidade do regime militar, cuja ignorância e estultice só tem paralelo, hoje na democracia, com as motivações usadas pelos distintos deputados e senadores, para determinar o afastamento da Presidenta com 54 milhões de votos.

Numa palestra gravada em 1962, durante um Seminário promovido pela então União Estadual de Estudantes, sobre a Reforma Universitária (vol.2, pgs 42 e 43), o Professor Fiori, defendendo a participação dos estudantes na gestão da Universidade  (que à época era uma luta “radical” da juventude acadêmica) responde  – à objeção conservadora de que eles não estavam “preparados” porque não entenderiam os intrincados problemas da administração pública –  com o seguinte argumento: esta “objeção” igualmente serve para a “quase totalidade dos professores”, que também não conhecem nada de técnicas orçamentárias, administrativas e financeiras. Contrapondo-se, aos que diziam que os alunos não teriam “maturidade”, para participar da gestão da academia, responde: se os alunos tivessem a maturidade de uma  pessoa de 40 anos, seria melhor que não participassem, porque aí não teriam nenhuma função a exercer.

Lá na pg. 303 e seguintes, do volume 2, no ensaio “Sobre realismo político e utopia” (1984), o Professor Fiori reporta-se a Maquiavel e Platão. Mostra que o primeiro -quando trata da “pátria”, da utopia itálica, portanto-  faz uma ponte doutrinária entre o pragmatismo, para a instalação de um “principado novo” (esperança e ideal) e a “verdade efetiva das coisas”, ou seja, as suas possibilidades práticas, cujos limites são dados pela realidade.  Explicita  o Professor Fiori, assim,  as duas condições de toda a “utopia portadora de veracidade futura”: o “novo”, inventado pela vontade política e o “fundamento”, que oferta ou não as possibilidades reais, para realizar este “novo”. Na verdade, está contida nesta contradição, toda a dramaticidade das grandes transformações sociais e dos desafios históricos, que combinam o “ideal”  -como vontade e projeto-  e os limites postos pela realidade da vida: o pragmatismo necessário ao exercício do poder, em qualquer circunstância.

Churchill trabalhou este cenário com a promessa de “sangue suor e lágrimas”, o duro e “verdadeiro” sacrifício, necessário para o ideal de derrotar o nazismo e a pátria ser livre. Lenin colocou que era “é precisos sonhar” – o ideal-  mas “trabalhar escrupulosamente para realizar os próprios sonhos”, granítica realidade de uma luta incerta.  O Marechal Rondon expressou-se desta forma, como pioneiro do tratamento humanista da questão indígena, com os limites da sua época: “Morrer, se preciso for” – previsível realismo da missão-  “matar nunca!”, como utopia, provinda de uma decisão moral.  Estes episódios históricos, através das lições do professor Fiori, podem e devem ser filtrados para a nossa época, na qual precisamos construir uma nova  vontade política organizada, que seja suficientemente realista para não alimentar o fascismo latente, mas suficientemente ousada, para promover mais democracia e mais cidadania. Gramsci -político e filósofo- falava no “otimismo da vontade e (no) pessimismo da inteligência.”

Não vejo outra forma de fazer isso, no momento, que não seja iniciarmos um processo democrático de relegitimação do poder político, tanto do Parlamento como da Presidência da República.   É ilusão do oligopólio da mídia e ilusão do Presidente interino, que o “ajuste” (sacrificial) possa legitimar o Governo atual e devolver serenidade institucional ao país. Estes “sacrifícios” – que são sempre sacrifícios das partes mais pobres da população – só agravam as crises e funcionam, em alguma medida, para movimentar a economia, recuperando limitadamente  o que foi perdido com a recessão, até o próximo ajuste e as novas castrações dos direitos sociais. E geram mais uma consequência de gravidade estratégica: quando estes “ajustes” são aplicados por governos sem legitimidade, a sociedade vai perdendo o apreço pela democracia e alimentando a esperança em salvacionismos autoritários, de qualquer origem. Não é de duvidar que o oligopólio da mídia queira precisamente isso, mas, se for assim, optam por uma aventura política, cujas consequências são imprevisíveis, num cenário econômico futuro em que a ampla maioria terá pouco ou nada a perder, mas o nosso projeto democrático estará comprometido por um  largo período.

Ao aceitar, publicamente, consultar a população sobre a continuidade do seu mandato, após ser derrotado o seu afastamento no Senado, a Presidenta Dilma deu uma demonstração de responsabilidade e seriedade  política que ficará na História.  E o fez, fazendo autocrítica das alianças que se esgotaram, já na metade do seu primeiro mandato e que permaneceram, sem qualquer reserva sua e do PT, lamentavelmente acomodado no realismo sem utopia, que foi gradativamente se transformando num pragmatismo sem princípios. Todos nós temos que nos dar conta disso para podermos -em alguma medida- recuperar o PT para um novo ciclo reformista e democrático. É a possibilidade que a vida nos oferece, no momento: a utopia democrática, coesionando uma ampla maioria, em defesa da soberania popular, da ideia de nação e do combate frontal às desigualdades sociais, que ainda nos humilham como país juridicamente livre.

Um dos aforismos mais conhecidos de Shakespeare está no final do seu grandioso “Hamlet”, quando este diz, na sua agonia: “O resto é silêncio” e morre. Ficou injustamente esquecida, todavia, a observação de Horácio que segue à morte de Hamlet:  “Assim estoura um nobre coração”. Será o silêncio, que a sociedade brasileira escolherá, depois da vitória da usurpação do poder político, por um Parlamento falido?  Permitiremos que estourem o “nobre coração”, da nossa democracia, tão duramente conquistada? Só a soberania popular poderá resolver este impasse, não o oligopólio da mídia, nem um Presidente interino, que surgiu das sombras da traição, contra o “nobre coração” da nossa democracia.

Tarso Genro foi Governador do Estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, Ministro da Justiça, Ministro da Educação e Ministro das Relações Institucionais do Brasil.


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