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2 de janeiro de 2016
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10:08

Lembranças de fim de ano com Churchill e Stálin: dois camaradas

Por
Sul 21
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Unidos contra Hitler, Churchill e Stálin, construíram entre eles até o fim da guerra (quando começaram aparecer os dissensos sobre a nova situação geopolítica do mundo), mais do que um acordo militar conjuntural.
Unidos contra Hitler, Churchill e Stálin, construíram entre eles até o fim da guerra (quando começaram aparecer os dissensos sobre a nova situação geopolítica do mundo), mais do que um acordo militar conjuntural.

Por Tarso Genro

Para que se tenha um final de ano menos amargo, face aos dramáticos acontecimentos mundiais de 2015, que vão desde a tragédia das populações refugiadas, mortes de inocentes em atos terroristas, violências policiais sem qualquer medida de precaução cidadã (como ocorre em várias partes do país), passando pelos ilusórios “ajustes”, cujos efeitos só recaem sobre as costas dos mais pobres e necessitados – para um final de ano ao menos mais “histórico”- vamos lembrar um pouco da época recente, para tentar passar duas mensagens.

A primeira: é posição recorrente, hoje, dos mais interessados em manter o “status quo”, apresentarem soluções paliativas, que aparentemente respondem às ansiedades da população, para não mexer no essencial. Por exemplo, reduzir as funções públicas do Estado e sacrificar parte do serviço público, para, no “macro”, não enfrentar os ganhos especulativos do grande capital e os ganhos improdutivos, em geral, do rentismo, que vem da manipulação da dívida pública. Dizem que “não há outra alternativa”. Segundo: é do interesse, também, dos mais privilegiados ou acomodados, promoverem uma “política de sacrifícios”, apresentando o presente como um presente único e sem ligações com o passado. Tal postura permite convencer maiorias, que tudo se concentra na “vontade” de cada um como indivíduo, no agora imediato, sem relação com os interesses das classes sociais, para construir, rapidamente, uma vida melhor e mais estável para todos. Sem, é óbvio, que os proponentes de tais políticas renunciem aos seus privilégios, seja no setor público ou no setor privado, mas operando diretamente (ou através prepostos) algumas “palavras de ordem”, pelas quais recebem em troca algumas prebendas sociais e prestigiamento político.

Espero que as referências históricas que faço no presente texto sirvam, pelo menos, para que as pessoas mais jovens não se iludam com o congelamento que o neoliberalismo quer fazer do presente, transformando a energia libertária contida em cada ser humano ou grupo social, numa pulsão pelo consumismo e pelo mercado, que será inevitavelmente frustrada: o mercado -como centro da ordem- é o lugar da naturalização da desigualdade, não da equidade. A vida não é uma guerra pela última novidade internética e o amor entre as pessoas, as relações de solidariedade que também conduzem os seres humanos -além das guerras e das lutas entre os indivíduos- não estão definitivamente mortas e enterradas. A História demonstra que estes sentimentos sempre retornam e nos comovem, como seres “pensantes”, desde a antiguidade clássica. Estes valores não estão mortos, outras reformas virão e outras revoluções vão nos desafiar. Como disse Faulkner, no seu discurso de recebimento do Prêmio Nobel, quase literalmente: “ninguém me fará desistir do ser humano.” Em outras épocas, em circunstâncias diferentes, homens diferentes, com suas grandezas e misérias, agiram de forma diversa em situações análogas, em defesa da Humanidade, independentemente dos seus propósitos mais amplos.

O volumoso livro de “Memórias da Segunda Guerra Mundial” (1995, Ed. Nova Fronteira), escrito por “Sir” Winston Churchill (1874-1967), de quase 1200 páginas, lança uma luz definitiva sobre os grandes dilemas políticos da Humanidade, enfrentados no Século XX. Além de revelar a relação de recíproca admiração, entre os dois grandes comandantes políticos e militares da derrota do nazifascismo, o livro mostra que a História é sempre muito mais rica do que imaginam inclusive os seus grandes protagonistas. Unidos contra Hitler, Churchill e Stálin, construíram entre eles até o fim da guerra (quando começaram aparecer os dissensos sobre a nova situação geopolítica do mundo), mais do que um acordo militar conjuntural. Estavam conscientes, cada um a seu modo e com suas respectivas visões de sociedade, que nenhum dos países seria um vitorioso solitário. Churchill dizia que “se Hitler invadisse o inferno, (…) cogitaria um aliança com o demônio”. Stálin disse a Churchill, quando este lhe expôs o plano de uma Segunda Frente militar, em 1942 – plano/operação “Tocha”- que aliviaria a pressão nazista sobre o Exército Vermelho: “Que Deus abençoe este projeto”.

Churchill considerava Stálin (pg.708) um “grande líder revolucionário, sagaz estadista e guerreiro russo, com quem, nos três anos seguintes, manteria uma relação íntima e austera, mas sempre instigante.” A formação de um Gabinete de Coalizão, na Inglaterra, com os Conservadores e Trabalhistas, dirigindo os esforços do país para enfrentar a besta nazista tem, em Winston Churchill e Clement Attlee (este, a grande liderança socialista democrática do “Labour Party) as duas figuras centrais do Estado Inglês. Assim, Churchill se apresenta perante Stálin, na grande tarefa de colocar a produção industrial inglesa a serviço do reequipamento das suas Forças Armadas, para acordar com ele os grandes movimentos de guerra e preparar o país para os anos de resistência e ofensiva. Em certas oportunidades, Churchill – que compreendia como incontornável a necessidade de uma centralização das decisões estratégicas interiores – ditava sentenças como esta: “O que eu espero, senhores, é que depois de um razoável período de discursos, todo mundo concorde comigo.”

Quanto a Attlee – que logo depois da Guerra derrota os conservadores de Churchill e se torna Primeiro Ministro (entre 1945 e 1951), Churchill escreve nas suas memórias (pg.268): “Nossas únicas diferenças de opinião concerniam ao socialismo, mas foram abafadas por uma Guerra, que logo implicaria na mais completa subordinação do indivíduo ao Estado”. E comenta, mais adiante (pg. 270): “um líder consagrado só precisa ter certeza daquilo que é melhor fazer, ou pelo menos saber decidir por uma das possibilidades.”

O Governo de Attlle introduz, fortemente, na Inglaterra, os mecanismos de proteção do Estado-de-Bem-Estar, expressos em conquistas sociais – algumas inclusive engendradas durante a unidade nacional em torno da Guerra – que perduram até o presente. Depois da rendição alemã, Churchill formula a tese da “Cortina de ferro (que) fechou-se sobre o front”, em carta ao Presidente Truman, já alimentando o estômago da Guerra Fria. Stálin passa a compará-lo com Hitler, marcando uma adversidade que vai acompanhar toda segunda metade do Século XX, até o fim da URSS. Aqui, as variáveis da geopolítica mundial passam a ser outras, já determinadas pelo controle do capital financeiro, autonomizado da produção, nos países de fora do núcleo orgânico do capitalismo global. Churchill apoiara o lançamento da bomba atômica sobre Hiroshima e Nagasaki, consolidara o massacre da resistência grega, “deixada de lado” por Stálin. Stálin já tinha o passivo dos Processos de Moscou e os crimes da coletivização forçada. Tudo, para ambos, “dolorosas necessidades da História”.

Em 26 de julho de 1945, depois da surpreendente derrota nas eleições -após ter sido um Comandante político e militar vitorioso contra Hitler seus sequazes- Churchill expressa, através de uma mensagem pública ao povo britânico, a “profunda gratidão pelo apoio sólido e inabalável”, que recebera durante os anos de Guerra “e pelas expressões de gentilezas que (o povo) demonstrou a este seu servo”. Iniciara a mensagem com a seguinte frase: “A decisão do povo britânico foi registrada nos votos hoje computados. Por conseguinte, depus o fardo que me fora colocado nos ombros em tempos mais sombrios.”

A segunda metade do Século XX foi a época da Guerra do Vietnã, do assassinato do Presidente Kennedy, do fracasso da era Mitterrand, das reformas “tatcheristas”, do fim da União Soviética, da vitória de Mandela, da Revolução Cubana, das ditaduras latino-americanas, da Revolução dos Cravos, do fim do franquismo, do suicídio de Vargas, da fome e da mortandade na África pós-colonial. Época da barbárie das Torres Gêmeas, do aguçamento da eterna e justa luta dos palestinos por um Estado independente… e tantos outros acontecimentos dramáticos, belos e terríveis. E assim, aos poucos, neste frondoso carnaval de imediatidades artificiais, vamos sendo convencidos a nos distanciar das lições da história e a viver, mecanicamente, no presente. Como se cada fração do presente não tivesse vínculos com o passado e como se cada momento dele, presente imediato, fosse um momento congelado e definitivo da nossa existência.

A “mercadoria”, que nos tem sido passada pela mídia mundial (não somente aqui no nosso país) é que vivemos um momento extraordinário e “axial” dos destinos da História Universal. De um lado, pela luta contra o terrorismo “islâmico” e, de outro, face aos ajustes que o capitalismo estaria sofrendo, para entrar numa fase de prosperidade definitiva. Estas mensagens, espalhadas em editoriais e colunas, cujos autores entendem de tudo – desde a dívida pública até complicadas questões de Direito Internacional- com conceitos maquiados pelos interesses do grande capital, tentam tornar a contingência histórica de uma crise do capital -mais uma- num momento ilusório da sua solução.

Na verdade, as suas premissas são incongruentes: primeiro, a guerra não pode ser vista como uma guerra contra a comunidade islâmica, mas sim contra grupos terroristas -islâmicos ou não- que foram armados e estimulados pelas próprias intervenções do Ocidente, para defender seus interesses geopolíticos nas regiões de grandes reservas de energia fóssil; segundo, os “ajustes”, que estão sendo feitos, são ajustes que visam apenas adequar países e regiões devedoras, às novas condições de pagamento da dívida pública. Dívida que mistura débitos, tanto legítimos como ilegítimos, tanto juros e serviços contratados, como juros e serviços manipulados pelo mercado. A prova disso está no próprio reconhecimento da necessidade de trocar os coeficientes de correção da mesma, aqui no Brasil, que perduraram por largo tempo -de forma ilegal e ilegítima- com prejuízos brutais aos cidadãos que pagam corretamente os seus impostos.

Um novo ano começa. Preparemo-nos para mais um tempo de cansaços e de “reformas”. A mídia monocórdia vai continuar formando a opinião e nós vamos continuar lutando contra a maré. Mas não esperemos “retornos” rápidos da tradição humanista das Luzes. Como disse Alain Touraine, no seu “Poderemos viver juntos?” (apontando o estranhamento das formas de luta desenvolvidas na sociedade industrial frente à nova sociedade das redes e do capital financeiro), “os novos combates são travados mais pela diversidade do que pela unidade, mais pela liberdade do que pela participação; é mais no domínio da cultura do que no da economia” (onde tudo nasce e cresce), “que explodem as grandes paixões” (…) embora “os projetos sobre a organização da vida coletiva sejam tão centrais na vida de cada um, como o eram na sociedade industrial ou antes, no momento da formação dos Estados Nacionais”.
Lembro, de cabeça, um poema que transcrevo, apenas, a imagem que dele me ficou. É de Moacyr Félix, no seu “Canto para as Transformações do Homem”: “É inútil querer parar o homem, que transforma a pedra em piso e o corpo em infinitas músicas da carne”. Vamos em frente. Feliz Ano Novo!

Tarso Genro foi Governador do Estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, Ministro da Justiça, Ministro da Educação e Ministro das Relações Institucionais do Brasil.


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