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18 de janeiro de 2016
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09:30

Carta de um quarto de século

Por
Sul 21
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Da esquerda para a direita, deputados Pinheiro Machado, Dionélio Machado e Otto Ohlweiler, dirigentes do PCB, em 1947 (Foto: http://ottoalcidesohlweiler.blogspot.com.br/)
Da esquerda para a direita, deputados Pinheiro Machado, Dionélio Machado e Otto Ohlweiler, dirigentes do PCB, em 1947 (Foto: http://ottoalcidesohlweiler.blogspot.com.br/)

Por Tarso Genro (*)

Há vinte e cinco anos desta data eu recebia o manuscrito de um amigo, com o qual eu dialogava e aprendia semanalmente, chamado Otto Alcides Ohlweiler. Não recordo se o documento respondia a um pedido meu, para que a sua opinião constasse de documento político que eu estaria coordenando a redação, ou se seria destinado ao prefácio de algum livro, que estaríamos a apoiando a edição.

Otto, professor da UFRGS, autor de livros e textos científicos e filosóficos, pesquisador que avançou para terrenos tão diferentes como a “química analítica quantitativa”, a teoria do “pensamento mágico” e a “religião e a filosofia no mundo greco-romano”, também foi deputado na Constituinte Estadual de 47. Seus companheiros de bancada -cassada logo depois da posse- foram Dionélio Machado, um dos grandes novelistas do Brasil no século passado e autor do insuperável “Os Ratos”, e aquele que seria um dos maiores advogados da sua geração, Antonio Pinheiro Machado Netto. Todos eles estariam recebendo hoje mensagens para, como Obama, “irem para Cuba”, pois foram quadros do Partido Comunista Brasileiro.

A “carta” é de janeiro de 91 e Otto viria a falecer em setembro do mesmo ano, deixando uma vasta obra científica e um grande prestígio internacional para a nossa Universidade, comparável ao conquistado por um outro grande cientista, que aportou nos nossos pagos com a sua inteligência fulgurante: o Professor Ivan Izquierdo.

A obra científica e histórica de Otto foi uma demonstração viva de que a neutralidade da ciência é um mito e que inclusive o próprio conceito de neutralidade pode ser manipulado por qualquer visão mecanicista do mundo. Quando Stálin, por exemplo, dizia que a ciência “não era neutra”, ele estava querendo dizer exatamente o contrário: ela deveria ser “neutra” (a “ciência soviética”) – como fez Lisenko com as suas concepções “marxistas” sobre a genética”- perante a influência de outras concepções filosóficas. Dizer que a ciência não era neutra, para Stálin, era uma forma de suprimir qualquer diálogo metodológico e filosófico, capaz de colocar em risco uma ciência soviética, purificada de qualquer “influência burguesa”.

O mito da neutralidade da ciência – ou seja, de que ela tem um estatuto “separado” de uma visão filosófica e política do mundo, inclusive do Estado que a financia- pode ser representado pela “teoria do mercado perfeito”. Nela, o mercado moderno – marcado pelo dinheiro como mediador universal das trocas – é visto como condensador de todas as informações necessárias, para o funcionamento justo da sociedade mercantil. Este mito da neutralidade da ciência também está contido nos experimentos “científicos” dos nazistas, com seres humanos. Na primeira hipótese, o mercado “precificaria”, com tal perfeição, que seria dispensável a capacidade regulatória – a ação política do sujeito- para interferir na formação do preço, cientificamente formado pelo mercado; na segunda hipótese, o sujeito humano -como indivíduo- é transformado, ele mesmo, em objeto, portanto, oferecido como sacrifício para a ciência “pura”, atitude que implica na negação de uma visão “política” do humano, integrante de um sistema de ideias (filosofia, ideologia) sobre a Humanidade.

Ora, aceitar a “teoria do mercado perfeito”, as teorias de Lisenko sobre genética ou os experimentos dos nazistas com os seres humanos, parte de uma visão de Humanidade, que molda as opções políticas do sujeito. São as opções originárias desta visão que orientam, tanto as escolhas metodológicas do cientista, como as escolhas do próprio objeto da investigação. O reconhecimento de que existem metodologias diferentes nas ciências sociais e nas “exatas”, por exemplo, não comprova a neutralidade da ciência, nem a sua separação da filosofia, mas apenas reconhece a especificidade do seu objeto de conhecimento.

Mesmo a grandeza de um filósofo-jurista, como Hans Kelsen, não escapou desta armadilha, quando sustentou que a “teoria pura do direito” seria uma teoria despida de “toda a ideologia”. Ela seria, portanto, uma “ciência” (neutra), como se a própria concepção de “pureza” do direito, já não fosse uma escolha ideológica, constituinte dos pressupostos do Estado de Direito “racional”, pensamento, aliás, que nada tem de “neutro”: é originário da cultura da ilustração e das revoluções dos Séculos 18 e 19.

Mas há uma grande diferença entre Kelsen e os futuros profetas da neutralidade da ciência: é que ele formulava a sua Teoria Pura do Direito, buscando a “pureza” da neutralidade formal do Estado de Direito, contra as Teorias do Absolutismo moderno. Através destas, a aristocracia ainda resistia e bloqueava os princípios da igualdade cidadã, tanto por mecanismos jurídicos, como por mecanismos políticos de exclusão das “classes baixas”, como diziam os nobres ingleses. Na verdade, a neutralidade “pura”, da teoria de Kelsen, não era nada “neutra”, mas altamente politizada, para colocar o Estado Moderno numa situação mais democrática do que a precedente: estava em jogo o funcionamento “garantista” do capitalismo, que só poderia se configurar com a constituição de um Estado formalmente “acima da sociedade”.

Eis o texto de Otto, que cobra atualidade vinte e cinco anos depois de escrita:

“Precisamos organizar, com a máxima urgência, uma grande frente popular de amplitude continental destinada a motivar movimentos contra a guerra e contra a escalada da direita no mundo ocidental. É necessária a construção de uma organização de amplitude continental para unificar os povos americanos na luta em favor da paz, dos direitos democráticos, do princípio de autodeterminação dos povos, da defesa do meio ambiente, das minorias étnicas, das mulheres e contra os projetos de dominação mundial por parte das potências hegemônicas. Para isso, parece-nos da máxima significação a convocação de um Congresso pan-americano em favor da solidariedade entre os povos, pelo respeito à paz e aos direitos humanos. Não podemos nos submeter às imposições do obscurantismo e da violência que partem dos monopólios ligados à fabricação de armamentos”.

Porto Alegre, jan / 1991
OTTO ALCIDES OHLWEILER

Reprodução: Arquivo pessoal
Reprodução: Arquivo pessoal
Reprodução: Arquivo pessoal.
Reprodução: Arquivo pessoal.

(*) Tarso Genro foi Governador do Estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, Ministro da Justiça, Ministro da Educação e Ministro das Relações Institucionais do Brasil.


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