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21 de dezembro de 2015
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10:35

Ainda germina

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Sul 21
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Ainda germina
Ainda germina

Por Tarso Genro

Um dos relatos mais interessantes – escrito por militares – que li sobre o período do regime militar no Brasil, foi escrito pelo General Hugo Abreu, no qual ele relata a luta de bastidores – dentro do estamento militar – na sucessão do Presidente Ernesto Geisel. Chefe do Gabinete Militar da Presidência da República durante quatro anos – entrou com Geisel e saiu em janeiro de 78 – o General Abreu foi peça fundamental na exoneração do General Frota, do Ministério do Exército (outubro de 1977), de onde este desafiava a autoridade do General Presidente.

O General Abreu viveu “por dentro” os momentos mais importantes da disputa sucessória de Geisel. Ele os narra no seu “O Outro Lado do Poder” (Ed. Nova Fronteira, 1979), no qual fica transparente a dura “luta interna” entre os Generais Geisel e Frota, sobre qual o destino a ser dado ao espólio do Regime. Este, já debelara todas as resistências pela força, mantinha a imprensa sob censura, cooptara ou seduzira grande parte das elites políticas e reorganizara, a seu modo, o Estado e a economia do país.

Geisel toma duas atitudes, no cenário internacional, dentro da sua política externa  do “pragmatismo responsável”, que chocam a direita militar mais radical e despertam a ira do anticomunismo mais primário, que tinha impulsionado o regime de exceção de 1964: o reconhecimento do Movimento Popular de Libertação de Angola, como governo legítimo daquele país (11 novembro de 1975) -logo após a chegada das tropas revolucionárias em Luanda- depois de ter estabelecido relações diplomáticas com a China Comunista (8 de agosto de 1974). Suas decisões retomavam, portanto, em grande parte, a visão de política externa independente que o Brasil vinha esboçando desde depois da Segunda Guerra. O General Hugo Abreu diz no seu livro que este ato do Governo Geisel “foi uma das mais importantes e mais acertadas decisões (…) no campo da política internacional”.

Na raiz da ruptura do General Abreu com o Presidente Geisel, em 1978, porém, esteve a visão crítica do primeiro, a respeito do “grupo palaciano” em torno do Presidente da República, que através de manobras de bastidores e, em desrespeito à nação -segundo Hugo Abreu-  pretendia “eternizar-se no poder”. Estaria desviando os objetivos “moralizadores da Revolução de 64”, em conjunto com grupos “oligárquicos”, que sempre estiveram em qualquer Governo e que teriam cooptado o General Geisel, depois da sua chegada à Presidência.

O General Frota, que se propunha a suceder Geisel sustentado pela extrema direita militar e civil, foi demitido por Geisel e saiu do Ministério do Exército criticando o restabelecimento de relações com a China. O General Hugo Abreu, quando saiu, continuou defendendo aquela ousada decisão de política externa. Este, não era menos anticomunista ou mais democrata do que aquele e a diferença, entre eles, poderia ser apontada da seguinte forma:  ambos, adeptos do Regime Militar, diferenciavam-se gravemente na questão da construção da nação, com mais ou menos soberania, com mais ou menos autonomia, em relação aos polos de poder então vigentes, formados, à época, pelos Estados Unidos e a União Soviética.

Este episódio ressalta o óbvio: a política nunca se extingue. E ela se faz, desde a emergência do Estado moderno, seja no cenário democrático ou nos sombrios recantos dos regimes fechados, em torno das questões do poder e das relações reais de poder. Ela tanto se expressa na força que as burocracias adquirem dentro do Estado, nas disputas entre partidos, como na força sedutora ou coercitiva do poder econômico. Os Processos de Moscou, a operação das “Mãos Limpas”, as lutas de foice dentro dos estamentos militares nos regimes ditatoriais, os “devidos processos legais” politizados, em qualquer democracia, o caso “Clinton-Monica Lewisnki”, a operação “Lava Jato”, estejam ou não amparados em normas jurídicas legítimas, sempre expressam momentos em que política, direito e economia, se convertem de maneira incessante um no outro.

Uma diferença qualitativa fundamental entre um regime ditatorial e um regime politicamente democrático é que, no primeiro, a luta política fica na obscuridade das entranhas do Estado e não se expressa na cena pública, para ser avaliada pela sociedade; no segundo, ela aparece à luz do dia, mesmo com o processo de manipulação da opinião que é feito pelos grandes grupos midiáticos. Outra diferença, é que no regime democrático, a corrupção pode aparecer na cena pública; em qualquer regime fechado, -de qualquer origem- ela é controlada pelos grupos burocráticos do Estado, mais fortes, que só combatem-na quando ela dá suporte aos seus adversários, nas lutas internas pelo poder. Finalmente, uma diferença substancial: num regime ditatorial as pontes de diálogo entre oposição e Governo são obstruídas pela violência de quem detém o poder; na democracia, estas pontes podem se tornar canais de comunicação capazes de substituir a violência pela solução política.

Quando grupos fascistas ou de extrema direita pedem – gritando palavras-de-ordem a respeito de Cuba –  a volta da “intervenção militar”, nas passeatas pelo “impeachment” da Presidenta Dilma, na verdade estão assumindo um conteúdo golpista totalmente fora de época, defendendo teses que já foram superadas dentro do próprio Regime Militar, como se viu no Governo Geisel. Colocam-se à direita do próprio Regime Militar, que recebeu do próprio General Frota uma dura reprimenda, em outubro de 77, quando este saía do Ministério do Exército, também com a seguinte “acusação”: “O voto de abstenção, quanto ao ingresso de Cuba na OEA (…) esconde, na omissão, a simpatia a um país comunista, exportador da subversão.” A cegueira ultradireitista confundindo política externa com profissão de fé ideológica e soberania nacional com esquerdismo.

Estes grupos, aliás, não são repelidos pelos partidos que compõem o espectro oposicionista, que permite que eles formem a sua “vanguarda”, arrogante e violenta. Independentemente dos conflitos ideológicos (se é que existiam), entre o General Frota e o General Hugo Abreu (Geisel ao seu lado), as diferenças de opinião política entre ambos não foram de conhecimento público, como ocorreria em qualquer processo democrático. O fato é que o General Geisel e o General Hugo Abreu, não só tinham razão em relação a Cuba, Angola e a China -abrindo a política externa brasileira para um novo ciclo de independência e maturidade- como também abriram “frestas” de diálogo, no cenário internacional, no qual o nosso país era, até então, visto como uma republiqueta fora da lei e sem Constituição legítima.

A decisão do STF colocou a questão do “impeachment” – como luta pelo poder que faz parte de qualquer democracia- dentro das “regras do jogo”. Mas a forma pela qual, hoje, se estruturam as maiorias e as minorias, dentro do nosso sistema político, não dão legitimidade à obstrução do mandato da Presidenta. Não somente porque os motivos da aventura oposicionista são puramente instrumentais e não obedecem a nenhum princípio, mas também porque é visível que o oposicionismo quer servir-se da crise para chegar ao poder, mas não tem nenhum compromisso alternativo, para solucionar a própria crise.

Na questão da corrupção, por outro lado, o oposicionista mais eficaz contra o governo (que é de um partido de Governo e que sempre foi dirigente oposicionista radical) não é propriamente um jacobino incorruptível. É um girondino permanente, aguardando, na democracia, o seu “devido processo legal”. Estamos atravessando, nesta hora dramática da nossa história, um momento de escolha para resolver as nossas pendências pelas eleições de 2018, respeitando o pleito que legitimou o atual governo, ou optar por um ciclo de indeterminação política, capaz de comprometer o convívio dos contrários. Nesta segunda hipótese, poderemos dissolver a ideia de construção da nação soberana e democrática, que ainda germina no coração da ampla maioria dos brasileiros. Sejam eles, neste momento, oposicionistas ou não.

.oOo.

Tarso Genro foi Governador do Estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, Ministro da Justiça, Ministro da Educação e Ministro das Relações Institucionais do Brasil.


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