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3 de novembro de 2015
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10:26

Quando (ainda) se pode sonhar

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Sul 21
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Quando (ainda) se pode sonhar
Quando (ainda) se pode sonhar

Por Tarso Genro

O “Livro dos Sonhos”, de Jack Kerouac, me veio à mente nesta manhã cinzenta da nossa capital, devastada pelas chuvas de outubro. Lawrence Ferlinghetti dissera de Kerouac, num poema memorável: “Há um caminhante melodioso da América num jardim secreto….”. Assim vejo este meteoro da literatura da América, vazando estradas desertas, perseguindo a utopia sempre mais adiante, sempre adiada na miragem dos tempos.

Ferlinghetti, não menos poeta das dores da época e não menos escritor sobre os tempos de sonhos -quando em maio de 68 os estudantes tomam as ruas de Paris para uma revolução impossível — transcreverá anos depois no seu “Amor nos tempos de fúria”, os painéis da nova insurreição: “Abrace o seu amante, mas não deixe cair a sua arma.”

Parte das demandas de maio de 68, as que referem aos direitos individuais da condição sexual, aos direitos das mulheres na sociedade machista, às questões do meio-ambiente já são, hoje, senão absorvidas na normalidade democrática, aceitas como demandas legítimas e  negociadas ou processadas dentro da ordem e pelo menos consideradas pela maioria como requisições de humanidade.

Mas, as demandas de mais  igualdade social, mais liberdade internacionalista”, como -por exemplo- transitar no mundo com a mesma leveza e fluidez que transita o dinheiro e as tropas de ocupação -essas demandas-  não só não foram atendidas, mas, depois da queda do muro de Berlim, se bateram contra novas cercas de arame de farpado. Cercas que retém os rostos sofridos das crianças e suas mães, que fogem das guerras estimuladas por armas  e políticas do ocidente, em busca dos campos petrolíferos, para manter a vida estável nos países ricos do ocidente.

Volto aos sonhos e a minha lembrança do livro de Kerouac. Uma fotografia no jornal “Público”, de Lisboa, mostra uma massa enorme de refugiados contidos por um cerca, talvez na fronteira da Hungria. Eles querem se dirigir para o ocidente rico e fugir da guerra. O centro do foco é o rosto de uma criança que, entre perplexa e humilhada, parece  olhar diretamente para a câmera.

No sonho, eu estou na cerca do lado de cá, começo a ficar inquieto e digo: “Cuidado, não se movam, podem esmagar a criança!”. Ninguém me ouve, a multidão começa a se mexer e eu não consigo me movimentar para proteger a criança e quando consigo mover-me, faço-o muito lentamente, como se estivesse envolvido numa gigantesca teia que, ao mesmo tempo,  me restringe e sufoca.

Sempre entendi, certamente de maneira não muito freudiana e talvez cientificamente herege, que nossos sonhos -pelo menos os meus-  são uma forma de sonegação do sofrimento, de acomodação com o mundo real, que insinua caminhos. Não só para processar tormentos, mas também para sugerir novos impulsos para poder viver os momentos mais amargos da vida cotidiana e, secundariamente, de celebrar as conquistas da felicidade.

Volto ao sonho. Penso, dentro do sonho, que não vivo um momento totalmente irreal: que estou sonhando mas que, neste momento exato, meu universo onírico é a conjugação perfeita de uma tragédia real com uma impotência já sonhada, em outros sonhos. E penso, dentro deste sonho, que não quero acordar preciso ajustar contas com  as imobilidades de todos os outros sonhos, nos quais eu não conseguia me mover para reagir a um desafio de solidariedade. São aqueles sonhos recorrentes, nos quais a lentidão da história transforma o ar numa teia envolvente de contenção de todos os corpos.

A criança, agora, olha para mim e eu ainda não consigo me mover. O policial, que me parece um argelino ou cigano, que está ao meu lado lacrimeja e me diz “…e nós temos que nos prestar para isso!” E vai em direção à cerca de arame farpado, onde já se trava um  embate entre a multidão andrajosa e triste, que quer passar,  e os policiais de roupas escuras como uma noite de abismos sem fundo e sem escarpas.

Recordo mais uma inscrição lembrada por Ferlinghetti, tirada dos painéis de rua, nos muros de Paris em 68: “Você tem que carregar o caos dentro de si de modo a trazer ao mundo uma estrela dançante”. E o rosto da criança do sonho e da foto da Hungria, vai lentamente se transformando no rosto redondo e alegre do meu último neto, o Felipe, que começa a repetir sons debochados que eu lhe ensino, para ser irreverente com os mais velhos.

Tenho um único momento de paz neste sonho, quando acordo. E entendo que o sofrimento da criança na cerca da Hungria, tem o mesmo significado e intensidade que tem, para mim, alegria e a irreverência do Felipe. Com a diferença de que, para este -mais próximo de  mim e também sangue do meu sangue- não existem teias no espaço, que possam me conter para ajudar aqui, neste canto também dramático do mundo, a preparar um mundo um pouco melhor para todos eles. Entre a melancolia de acordar e não ter conseguido, ainda, me mover com força e agilidade nos momentos dramáticos dos sonhos, retomo o dia cinzento e real com seus movimentos elásticos, de decisões concretas e esperanças possíveis.

https://youtu.be/9FAKkJVBuiE

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Tarso Genro foi governador do Estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, Ministro da Justiça, Ministro da Educação e Ministro das Relações Institucionais do Brasil.


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