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16 de novembro de 2015
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10:26

A Carta do Companheiro

Por
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A Carta do Companheiro
A Carta do Companheiro

Por Tarso Genro

Numa carta que escreveu em setembro de 97, depois de dizer que foi hóspede de Porto Alegre, durante um evento sobre os seus filmes aqui promovido, Ettore Scola narra uma longa caminhada que fizemos na “periferia” da cidade, na qual foi guiado pelo “companheiro Tarso Genro” — como ele referiu na carta — com as seguintes palavras: “Graças a ele pude conhecer de perto a realidade daquelas comunidades, as suas necessidades e seus desejos. Mas sobretudo conheci o modo particular de Tarso Genro estar entre as pessoas, de misturar-se com os velhos e as crianças, de tornar-se um deles: um modo particular de estabelecer as relações entre as instituições e os cidadãos, um modo de afirmar a igualdade e o direito de cada um à distribuição mais justa daqueles recursos que possam garantir melhores condições de vida e de progresso. E a confiança que Tarso despertava, nascia da sua disponibilidade, da sua sinceridade, da sua paixão: comunicava isso aos outros e comunicou também, a mim. Agradeço a ele por isso.”

É claro que me senti muito orgulhoso da referência pessoal, que me fez o “companheiro Ettore”, na oportunidade. Tenho perfeita consciência, porém, que ele o fez em virtude da minha então condição de Prefeito, pela qual eu representava todo um projeto político e de gestão, ali, em plena condição de maturidade. Projeto construído por milhares de braços e mentes que, solidariamente, colocaram Porto Alegre no mapa do mundo e a fizeram uma referência democrática planetária. Seus efeitos permanecem até hoje na vida da cidade. Lembrar a visita de Ettore Scola não é nostalgia, mas é — neste momento de crise — começar a reavivar a memória dos que teimam em viver uma espécie de sublimação histérica do presente, como se as pessoas não tivessem passado e as construções da cidadania não estivessem ancoradas em lutas que atravessam gerações.

Já vivemos num tipo de sociedade controlada pela imagem e pela circulação de bilhões de informações. Principalmente elas  circulam nas Tvs e nas Redes, que democratizaram a  transmissão de mensagens de todos os tipos, mas também transformaram a cultura e a História, em regra, em fatos “fenomênicos” passageiros, fragmentários, vinculados ao consumo e à violência. É a exasperação do gozo imediato que anestesia, são as explicações “em compota” dos especialistas de olho na bolsa, é o ambiente de guerra civil promovido pelo crime organizado, guerras e ocupações ao vivo com “mortes limpas” em várias partes do globo e, ao vivo e a cores, vida de excessos dos “astros-paradigmas” bilionários, compondo um cenário de decadência muito semelhante àquele retratado por Bergman,  no “Ovo da Serpente”.

Naquelas frestas de boa cultura, que ainda restam neste cenário, recuperei a memória de Ettore Scola em Porto Alegre. E o fiz encantado com um filme por ele dirigido, em 2013, que assisti na quarta-feira próxima passada no Telecine”Cult”. Trata-se do “Que estranho chamar-se Federico”, uma homenagem do discípulo ao mestre e amigo Fellini, documentário e reconstituição com atores, da história comum destas duas grande figuras da cinematografia mundial. Fellini, que sequestrava seus amigos mais próximos para longos passeios de automóvel na noite romana, transformando o veículo num escritório de Humanidades e num confessionário de delírios: sobre a arte e sobre as fantasias, que são “verdades que ninguém vê”, como ele mesmo testemunhou, com seus filmes geniais; e Scola, mais jovem, não menos genial, que fruindo da amizade de Fellini e dos seus mesmos sonhos torna-se, depois dele, o grande mestre do cinema italiano nos seus melhores anos pós-fascismo.

Gostei de todos os filmes que tive a oportunidade de ver, de ambos, mas, quando  ouço o nome de Fellini, sempre me vem as imagens de “Amarcord” (1973) e “Roma” (1972) e a insuperável cena de de Anita Ekberg. na “Fontana de Trevi, em “Dolce Vita”.  Quando soa o nome de Scola,  lá me aparece “Um dia muito especial” (1977) e “Nós que nos amávamos tanto” (1974). Não quero parecer saudosista e sei de diretores e filmes magníficos, que transitam nas telas de hoje, mas ouso dizer que, naquela época de Fellini e Scola, o número de lixos cinematográficos eram proporcionalmente menores do que hoje e o número de bons e grandes filmes, portanto, eram proporcionalmente maiores. Arrisco um motivo: hoje, a arte cinematográfica é muito mais “mercantil” do que antes e o seu potencial de proporcionar prazer e “autoconhecimento” da Humanidade, perdeu vigor e potência. Não que a arte não possa ser mercantilizada, mas ela se degrada quando é projetada apenas como objeto de consumo.

As relações de solidariedade entre as pessoas comuns, a celebração da amizade entre homens e mulheres simples, a crítica ao hedonismo e aos excessos dos novos ricos, a rejeição do fascismo e da autoridade pomposa e a fruição da cidade, são temas recorrentes nestas duas grandes figuras do cinema, que ficarão para sempre. Talvez possa se dizer, hoje, que o neorealismo italiano foi o ponto mais elevado do humanismo moderno, no cinema, e o principal testemunho da democracia redescoberta, nos duros anos do pós-guerra, que depois desembocam no florescimento da nova sociedade industrial, na Itália, com suas grandezas e misérias. Vamos entrar, em breve, num pleito municipal. Tomara que todos os candidatos se inspirem um pouco, na visão de mundo destes dois grandes mestres, para que possam ser confundidos, no bom sentido — como Fellini o foi — com outros grandes mestres do humanismo, sem perder a ironia e o prazer pela vida e , no caso, pela política. As questões das cidades estão cada vez mais complexas e as respostas serão, certamente, complexas. Mas o ponto de partida da simplicidade da escuta é que pode dar os instrumentos para resolvê-las.

Explico-me lembrando uma cena real que Scola selecionou para revelar, por inteiro, a personalidade do seu amigo. Foi na gravação da cena noturna, em que Marcelo Mastroianni e Anita Ekberg entram na “Fontana di Trevi”. Fellini está cansado e resolve dar um tempo. Interrompe as filmagens e senta. É quando um dos integrantes da sua equipe lhe diz que o Coronel Fulano, queria  cumprimentá-lo e que era bom que Fellini o fizesse, pois poderia ser importante a colaboração da autoridade, para a ambientação das filmagens. Fellini, visivelmente cansado, levanta e vai até o Coronel, que lhe estende a mão e diz da “honra de cumprimentar o grande Roberto Rosselini”, que ele tanto admirava. Todos, em volta, riem. Fellini dá um sorriso contido e agradece, normalmente, a deferência da autoridade. Afinal, ser confundido com Rosselini não é pouca coisa. Até mesmo para Fellini.

.oOo.

Tarso Genro foi governador do Estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, Ministro da Justiça, Ministro da Educação e Ministro das Relações Institucionais do Brasil.


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