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8 de junho de 2015
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11:24

Sobre as políticas de ajuste (quem são os desajustados?)

Por
Sul 21
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Por Tarso Genro

Com o presente texto mantenho a posição de não comentar ações do governo estadual, enquanto não forem apresentadas as medidas que se destinem a tirar o Estado da sua crise financeira de mais trinta anos e só falar de assuntos que se reportem diretamente a gestão que coordenei como Governador do Estado. As matérias que têm transitado nos jornais estão versando, apenas, sobre as medidas imediatas e pontuais do governo atual, como se elas fossem destinadas a debelar a crise, e não sobre as visões políticas mais amplas que as presidem. Pretendo, por isso, esclarecer mais uma vez com o presente texto, a nossa versão sobre as visões antagônicas — estratégicas — que orientam as decisões de cada governo.

Os “especialistas” ouvidos pela maior parte da imprensa são,  ou ligados a empresários preocupados diretamente as situações de curto prazo dos seus negócios e não na saúde financeira do Estado, ou são vinculados a núcleos de pensamento econômico que entendem que as principais saídas, para uma crise desta envergadura,  são saídas “orçamentárias”, ou seja, medidas destinadas a reestruturar o orçamento público, que está numa situação próxima do incontrolável. Nossa visão é que estas propostas são ilusórias e que as medidas de reestruturação do orçamento  — as que são realmente necessárias — devem ser feitas de maneira combinada com medidas de política econômica de caráter estadual,  destinadas a desenvolver, crescer, arrecadar mais, e reestruturar gradativamente o orçamento público, de forma a não onerar a população mais pobre e remediada, especialmente com cortes na educação, segurança e saúde.  E mais, que não podemos aceitar que a União faça os seus ajustes nas costas das políticas públicas que são de responsabilidade dos Estados e dos Municípios, que ela, a União,  tem obrigação constitucional de financiar.

Antes, algumas lembranças do que sustentei, sempre, em nome da Frente Política que governou o Estado até o fim do ano passado. Repeti como um mantra, desde que os debates sobre a globalização se radicalizaram, inclusive dentro do meu partido há 30 anos: não há nenhuma situação, local ou regional importante, que não seja, também, nacional e global; e que a forma de integração possível, menos danosa, para os países e regiões — para  inverter a subordinação às agências de risco, que coordenam a especulação  global —  seria adotar a postura de uma “cooperação interdependente com soberania”. Uma cooperação não subordinada, sem isolamento, porque a ausência de um país  do cenário global,  leva sempre  mais dificuldades precisamente para os pobres e assalariados, que não tem reservas nem para a sua sobrevivência imediata, ao contrário das camadas mais ricas e de alguns setores médios mais abonados.

Dizia, ainda,  que a subordinação aos critérios de integração econômica pautados pelo capital financeiro — com as suas “austeridades” para os mais fracos economicamente- levaria  a uma retração no consumo básico, com prejuízos em cadeia para toda a sociedade.  Dizia até que Cuba e Coréia do Norte,  buscariam esta saída “cooperativa interdependente”, para procurar melhores padrões de crescimento, visando distribuir renda e não simplesmente  socializar carências, o que ocorre sempre com os governos isolados das principais conquistas,  científicas e tecnológicas do ocidente, para dar a estas  conquistas uma destinação social mais justa, com políticas de desenvolvimento  decididas, em cada país, pelos seus governos soberanos.

Com o aprofundamento da crise do sistema do capital, nos últimos anos,  iniciou-se rapidamente um processo de transferência dos custos do ajuste. O Banco Central Europeu buscou a saída no seu quintal, usando a chantagem da dívida pública, não onerando os ricos  (que são os verdadeiros filhos pródigos do endividamento), mas sacrificando  os mais pobres, assistidos pelo estado, os trabalhadores assalariados de baixa renda e os assalariados com renda média,  do setor público e privado, e assim rebaixando os seus salários e os seus benefícios sociais.

O FED não fez diferente, embora internamente reagisse com políticas não tipicamente ortodoxas. O nosso país vem refletindo estas políticas globais, aumentando a taxa de juros e promovendo um brutal “aperto” orçamentário, sem base parlamentar e social para buscar outras saídas, que não sejam as tradicionais. E o faz porque não se preparou politicamente para outras alternativas, como fez Lula no seu segundo mandato.  Quando tudo estiver “saneado” teremos, aqui e na Europa, um pequeno crescimento — mantida concentração de renda — que será apresentado como uma “vitória do ajuste”, mas que apenas recuperará a recessão ou a estagnação, que o próprio ajuste promoveu. Mais tarde teremos um novo “ajuste”,  porque as reformas fiscais verdadeiras,  para um novo ciclo longo de crescimento e renda, como ocorreu nos trinta anos “gloriosos” do pós-guerra, na Europa, não foram feitas com esta destinação.

Já que estamos falando de saídas imediatas para  uma crise do capital, com brutais efeitos sociais, que sacrificarão gerações inteiras  (a Espanha tem 45 por cento de desemprego na juventude!), lembremos um livro recente, para não falar do que os “especialistas”  diriam que é a Bíblia da utopia, “O Capital” de Marx.  Falemos do novo “O Capital” (de Thomas Piketty – Ed. Intrinseca Ltda. pg.382)  — defensor jurado do sistema capitalista — quando ele fala do Estado Social  (mais utópico do que o “socialismo científico”, de Engels), mas que melhora a situação dos mais pobres e remediados. Trata-se de parágrafo, do livro referido, no qual ele comenta a “repartição dos custos” do bem-estar,  no Estado fiscal moderno:

“Não há nada de surpreendente nisso (na repartição de custos), é impossível arrecadar a metade da renda nacional e financiar direitos sociais ambiciosos sem demandar uma contribuição fundamental do  conjunto da população. Além disso, a lógica dos direitos universais,  que rege o desenvolvimento do Estado fiscal e social moderno combina muito bem com a ideia de uma arrecadação proporcional ou ligeiramente progressiva”.

Ora, nos países médios (como o nosso) ou nos mais  pobres (como a Grécia), ela é regressiva e desproporcional: quem sustenta o Estado são os assalariados de renda média, as “classes médias”, os assalariados em geral, e a maioria das empresas que não tem sistema de financiamento próprio ou não pertencem a bancos.

Neste cenário, “os custos do ajuste” – promovido pelo capital financeiro global e seus agentes políticos nos respectivos países – não oneram os mais ricos e sequer distribuem sacrifícios entre os diversos setores da sociedade.  Estes “ajustes” refletem  nos orçamentos dos países endividados, promovendo outra transferência (interna) dos custos do “ajuste”: como a União é uma “abstração” (o seu concreto são os estados e os municípios) esta, a União, “faz o seu ajuste” com o aperto orçamentário nas costas dos Estados e dos Municípios, repartindo de forma desigual os ônus dos  acordos que fez no cenário financeiro global. Mas, atenção: é através destes entes da União, que a população recebe os serviços públicos  mais importantes, como a educação básica, saúde e segurança.

A União prossegue os seus “ajustes”, também aumentando a taxa de juros, atraindo recursos para se financiar, o que  onera  as empresas (que são a maioria),  que não tem sistema de financiamento próprio  (os conglomerados industriais globais tem este sistema e transferem os seus lucros para o seu próprio sistema financeiro);   a União também faz os seus ajustes, obrigando corte de programas sociais e induzindo o arrocho salarial sobre os servidores públicos, sem conseguir atacar os salários irreais de certas corporações -que não são muitas, mas que tem custos elevados- que estão  devidamente protegidas pelo sistema dos “direitos adquiridos” e por decisões autônomas que tomam, acolhidas no nosso sistema de Justiça.

Qual a radical diferença de concepção, entre a nossa estratégia e a do Governo atual, para responder à crise financeira do Estado  (que será, ainda, de longa duração) implementada por nós, desde o primeiro dia de Governo?  Foi defender o Estado, como a União deveria se defender dos ajustes que vem do “exterior”: controlar a dívida pública através  da redução da sua taxa de juros (renegociação da dívida do Estado com a União federal); recuperar espaço fiscal para obter financiamentos mais baratos, visando impulsionar o desenvolvimento; estruturar uma política de atração e de aumento de investimentos privados, microcrédito subsidiado (para pequenas e micro empresas); promover o impulso à agricultura familiar e as cooperativas; expansão e atração de grandes e médias indústrias, capazes de ampliar a oferta de empregos; recuperação dos salários do Estado e da esfera privada -estes com os aumentos reais do Salário Mínimo Regional- para melhorar o poder de compra destes setores;  forçar, tanto quanto possível,  investimentos da União Federal em infraestrutura;  aumentar a arrecadação cobrando a dívida pública; pagar contrapartidas à União para receber mais recursos de convênios… e repetíamos, “sair da crise crescendo, não se apequenando”, sem criar um clima de depressão no Estado.

O centro da nossa estratégia foi usar todos os meios políticos e financeiros (uso consciente do caixa único e dos recursos dos depósitos judiciais), para não paralisar o Estado e assim  não aprofundar a sua crise.  Fizemos isso, sem aumentar impostos e sem “rasgar” contratos, mesmo que alguns deles, em épocas anteriores, fossem  firmados e concedidos de maneira excessivamente concentrada, para grandes empresas que tem articulações especiais – tanto no Estado, como na União –  como, aliás, se deduz de acontecimentos que estão na crônica policial recente.  Mas,  este nosso “centro”, tinha um alicerce. E ele era a renegociação, para reestruturar a dívida pública do Estado com a União, pois sem esta reestruturação, tanto as nossas medidas  -que protegeriam os mais pobres e os setores médios, do desemprego e da redução real dos seus ingressos- , como as que virão do Governo atual (certamente ainda virão!),   sem esta reestruturação da dívida, todas as respostas do Estado  serão “engolidas” pelo seu pagamento abusivo. As mais irresponsáveis são medidas que enxugam gelo, atemorizam os investimentos na produção e os agentes econômicos sérios, prejudicam as médias e pequenas empresas e, reduzindo os negócios, bloqueiam o crescimento. Isso ocorre tanto  nos Estados como na União.

A nossa estratégia estava ancorada numa concepção de como a globalização funciona e de como resistir às transferências de sacrifícios, em cada um dos ajustes. Ajustes que se repetirão num processo infinito, em cada crise cíclica do capitalismo. À medida que o capital financeiro  – que arbitra os juros e intervém nos orçamentos dos Governos -centraliza as decisões dos Estados Federais ele intervém, também, diretamente nos governos estaduais/ regionais, pela dependência destes com a União. Através das restrições orçamentárias que  a União impõe a todos, ela, na verdade, faz dos estados e os municípios o “bode expiatório da crise”. O bloqueio da negociação da dívida dos Estados mais endividados é, assim,  uma forma da União cumprir os compromissos ajustados com o capital financeiro e as agências de risco, independentemente (no sistema político atual), de quem seja o Governo Federal. É que não basta a vontade de ter uma política de “cooperação interdependente com soberania”, pois, para esta  prosperar é preciso ter o apoio de um bloco social e político de classes, com organicidade na sua direção e  maioria parlamentar.

O acordo legalizado da nossa dívida com a União foi forçado através de uma ampla maioria política que está, agora, dissolvida, precisamente quando o PMDB assumiu praticamente a direção política do Governo, através da influência nefasta do Presidente da Câmara Federal, que controla a maioria do Partido. A transferência dos custos do ajuste da “austeridade”,  para os Estados, sem resistência destes e dos municípios, facilita  que o Governo da União se torne cada vez mais refém  das políticas recessivas que tem infelicitado a Europa, as quais têm  apontado como “desajustados”, precisamente os que menos se beneficiariam com a expansão da dívida pública,  pela extorsão que o capital financeiro exerce sobre os Estados.

As fortunas que se fizeram, no período pré-crise, aumentaram a concentração de renda nos países endividados, irresponsavelmente, através da manipulação dos juros e dos serviços da dívida, cobrados na aldeia global.
A nossa tese – “o Estado só sai da crise crescendo” – partiu de uma análise criteriosa da situação internacional e das relações das unidades federadas com a União e ela continua cobrando total atualidade. Trata-se de uma visão política, que não aceita transformar a ação dos governantes em “simples” repasses dos desejos da economia financeira, que não só não tem respostas de curto prazo como,  muito menos, respostas para o longo prazo.

As mensagens — claras ou subliminares — que estão sendo passadas por uma boa parte dos articulistas da grande imprensa local e seus “especialistas” de turno, aqui no Estado, como se  o Governo atual já tivesse apresentado medidas sérias para combater a crise,  tem o mesmo valor daquelas  famosas manchetes da Zero Hora, na oportunidade em que o Governador Britto consolidou a dívida com a União, com o então  Ministro Malan. Ali diziam que o Estado estava salvo, pelo trio genial,  Malan, Britto, RBS: ou são opiniões originárias de uma boa fé esperançosa nas concepções tradicionais neoliberais, ou são pura manipulação política para criar, mais uma vez, uma ilusão pacificadora e enganosa, que se baseia na espera, sem alternativas, da, esta sim, absoluta utopia do mercado perfeito.

Tarso Genro foi governador do estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, Ministro da Justiça, Ministro da Educação e Ministro das Relações Institucionais do Brasil.


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