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11 de maio de 2015
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12:02

No deserto sempre se está no centro

Por
Sul 21
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Por Tarso Genro

Em 8 de maio de 1945, a fúria bestial no nazismo foi formalmente dada como derrotada, na Segunda Guerra Mundial. Na Alemanha dividida, em 13 de agosto de 1961, o Governo da República Democrática Alemã ergue o “Muro de Berlim” e começa o auge da Guerra Fria. Em 9 de novembro de 89, fica marcada, formalmente, a “queda do Muro” e o reencontro do povo alemão, sob os escombros da URSS. A celebração do mundo ocidental, ou melhor dos que defendiam que a ditadura burocrática soviética deveria desaparecer do mapa, para que tivéssemos paz, prosperidade e democracia, foi impressionante.

Talvez este espírito até tenha sido até a inspiração, para a campanha que a Mídia dominante realizou, no início dos movimentos de junho de 2013, com a expressão o “gigante acordou”, referindo o Brasil, como gigante e as classes médias -principalmente- como quem acordava este menino letárgico, que acabava de melhorar a vida de 50 de milhões de cidadãos, mas precisava de um aviso de renascimento, sob a batuta do Jornal Nacional.

De maio de 45, até hoje, são 70 anos. Não tivemos paz -temos uma guerra extensiva com ações militares brutais, internas e externas em quase todo o mundo-; não tivemos prosperidade, mas crises sucessivas de um capitalismo que não precisa mais se comparar com ninguém, para continuar acumulando e ocupando territórios; não aperfeiçoamos a democracia, que se encontra cada vez mais submetida à força do dinheiro e com o seu poder político cada vez mais “incapaz”, ou -como diz Todorov, um democrata liberal, no seu “Os inimigos íntimos da democracia”- um poder “pouco desejoso” de conter a força do capital financeiro e suas agências de risco.

A crise política que estamos vivendo em nosso país, nos dias que correm, deve ser compreendida no contexto destes últimos 70 anos. Nestas sete décadas ocorreram profundas transformações econômicas e geopolíticas, num mundo que piorou depois da queda da URSS e que, ao mesmo tempo que sofreu uma formidável revolução tecnológica e uma brutal fragmentação social, não reformou -nas suas democracias ocidentais- nenhuma das suas instituições básicas. E elas foram erguidas há mais de duzentos anos.

Este contexto global das últimas décadas, significa que fomos apanhados construindo o Estado Democrático de Direito, quando a democracia recua e se restringe pelo poder do dinheiro. E fomos apanhados, reconstruindo um projeto nacional a partir da Constituição de 88, quando a força universal do capital financeiro já estreitara as opções de quaisquer projetos nacionais, combinada esta força do capital financeiro com o oligopólio midiático (o “partido” mais poderoso e rico), que induz, todos os dias, as pessoas aceitarem, que a saída, ou é o Levy do “caminho único”, ou é o caos e a desordem da inflação.

Este processo não consegue se estabilizar sem recursos a determinadas armas totalitárias, que se dão, não somente pela produção e controle das imagens, como se as imagens da mídia oligopólica fossem as imagens que o povo faz de si mesmo (para que todos reconheçam estas imagens como suas), como também por uma inversão das categorias morais, através de uma “novilíngua”, que lembra o “1984” de Orwell. Esta nova linguagem -abusada e usada todos os dias pela grande mídia- não precisa ser fundamentada, pois se legitima, a si mesma, com sua repetição à exaustão, pela ampla maioria dos “especialistas” em política e em economia financeira e chega até as pessoas mais simples como uma verdade autorizada de forma universal.

Assim, “Coragem” do político, em geral, é “cortar” gastos do Estado, especialmente destinados a proteger os pobres; jamais “coragem” será a redução forçada de dívidas espúrias, acumuladas ao longo de décadas e promovidas por juros manipulados pelo mercado. “Espírito público”, significa capacidade de reduzir as funções públicas do Estado, acabando com instituições que podem induzir e financiar o desenvolvimento de uma forma mais justa e equilibrada, especialmente para projetos destinados a promover as cooperativas, as pequenas e médias empresas e a agricultura de alimentos saudáveis. “Capacidade de decisão”, passa a ser tomar medidas arbitrárias, sem levar em consideração as condições políticas e sem respeitar a fala da sociedade, através de órgãos colegiados policlassistas, de concertação social. E “uso da autoridade” significa desinibição irresponsável, para Força Pública a usar da violência irrestrita contra os que demandam contra o Estado, ou contra os seus patrões.

Mas, o mais completo abuso desta noção totalitária da informação é o novo conteúdo semântico dado à palavra “ajuste”. A palavra “ajuste” foi ungida a uma condição de dogma religioso, que é, ao mesmo tempo, um predicado, um substantivo e um adjetivo. Ela não precisa ser explicada, nem no seu movimento predicativo nem nos seus efeitos, ou mesmo qualificada por uma outra palavra, que lhe precise o sentido: em si mesmo, a palavra “ajuste” já quer dizer “única saída” e sacrifício direcionado. E assim passa ser aceito, como se se o termo estivesse pacificado, “cientificamente”, como forma única de sair de uma crise, sem distribuir sacrifícios na sociedade e sem ferir os interesse dos mais ricos.

Jorge Luis Borges dizia que “no deserto sempre se está no centro”. A impressão que se tem é que o projeto democrático da modernidade está num deserto de ideias e não mais responde às promessas iluminadas, que já mobilizaram milhões de seres humanos, que lutaram tanto pela igualdade como pela liberdade, seja em nome da democracia, do socialismo, da social-democracia e da República. Neste momento, parece que o Brasil está no centro. De um deserto ou de um labirinto. Mas vale a pena tanto buscar as margens do deserto, como buscar caminhos dentro do labirinto democrático.

Tarso Genro foi governador do estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, Ministro da Justiça, Ministro da Educação e Ministro das Relações Institucionais do Brasil.


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