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4 de março de 2015
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11:37

Paixões irrestritas

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Paixões irrestritas
Paixões irrestritas

Por Tarso Genro

Minha paixão pelo cinema é quase tão irrestrita como a paixão que dedico à política. Pode ser um filme policial comum, desses que aparecem mulheres fatais em bares enfumaçados, com uma trama bem simples, mas inteligente. Um filme “água com açúcar”, que recorde alguma fantasia juvenil ou mesmo filmes sobre cães, como “Marley”, que ajudam a humanizar vida cotidiana. Gosto também dos filmes “cabeça”, com dilemas éticos, paixões não resolvidas, envolvimentos políticos. Só não gosto de filmes com excessos tecnológicos. Não raras vezes eles anulam o ser humano real, em efeitos especiais sufocantes, substituindo a falta de estória, a pequenez dos atores, ou até mesmo a ausência de talento do diretor, por shows tecnológicos.

Dos filmes “cabeça” tenho sempre em mente um diretor-ator, John Cassavetes, que faleceu neste mês de fevereiro, em 1989, aos 59 anos. Embora tenha trabalhado também em Hollhywood, Cassavetes foi sobretudo um cineasta –diretor e artista- de New York. Foi um rebelde contra a ditadura da indústria cinematográfica, puramente comercial, e contra as consequências do uso desmedido de técnicas cinematográficas que suprimem a centralidade dos atores, através dos “efeitos especiais”. Para ele, estes “efeitos”, derivados das novas tecnologias, de certa forma relegavam, já na época, o talento dos artistas a um segundo plano: rompia-se o delicado equilíbrio entre a técnica e a arte, em detrimento da arte.

Na visão do diretor-ator John Cassavetes, o ator é “Rei”. Nada substitui a sua capacidade de transmitir emoção, de convencer que a estória vivida diz algo importante para o espectador e que o ator, naquele momento, dirigido por alguém, envolve todos em sofrimentos, alegrias, paixões, que pertencem a todos os humanos. Arte, portanto, como autoconsciência construída, que é, ao mesmo tempo, um pouco da vida de cada um e de todos. Assim foi, por exemplo, no filme “Minnie e Moskowitz (1971), no qual Cassavetes é roteirista, diretor e ator, contracenando com a sua mulher Gena Rowlands e seu grande amigo Seymor Cassel, dois atores magníficos. É um filme sobre o amor, as dificuldades do casamento, as emoções indeterminadas, que acabam se conciliando numa ordem pactuada para a vida continuar fluindo. Pura estória humana, puro desempenho dos atores.

A substituição da maestria pela pura forma, a troca do ser humano verdadeiro pelos efeitos das novas tecnologias, pode ser manipulatória dos sentimentos. Pode fazer desaparecer a verdade da vida ou dissimulá-la. Pode transformar a obra em publicidade –captação da atenção e do desejo para um fim mercantil determinado- apenas para ganhar dinheiro. Este mesmo processo, levado para o terreno da política democrática (ação abusiva dos “efeitos especiais” nas eleições com seus custos exorbitantes), pode esconder objetivos e manipular consciências. Isso é válido para qualquer partido e qualquer candidatura.

Penso que a arte desperta sentimentos de humanidade e de comunhão, pela emoção tratada com maestria pelo artista. A política, dentro da democracia –de outra parte- vem da razão: projeto e destino. Quer despertar, em cada um, as melhores possibilidades de identidade voltadas para a construção de um futuro. Assim como a política também chega à emoção, a arte não dispensa, no seu ponto de partida, um juízo racional sobre o mundo, mas ela produz principalmente um compartilhamento emocional, proporcionado ao leitor ou espectador.

Para fruir o resultado da arte é indiferente alguém colocar-se como “minoria” ou “maioria”, em relação à capacitação estética do artista. Para fruir o resultado político de uma proposta democrática é necessário buscar ser maioria. Na arte, o mais frequente é que ela, para ser grandiosa e produzir seus efeitos futuros, até desafie o senso comum à maioria das pessoas. Por isso o nazismo e o stalinismo, para se afirmarem -embora com propósitos diferentes- desenvolveram técnicas de poder e formas de comunicar, que jogam com o instinto e o irracionalismo.

Ambos jamais se submeteram à aferição democrática de maiorias, nem internamente aos seus próprios partidos, nem para a discussão racional no âmbito público. O inimigo objetivo, no stalinismo, (nem que ele não saiba que é inimigo) é o dissidente, que deve ser suprimido; o inimigo objetivo, no nazismo, (nem que ele se considere alemão) é o judeu, que a sociedade deve eliminar. A reta razão linear, feita na lógica puramente formal, não é razão, é irracionalidade. A disputa política democrática, para ser verdadeira, exige canais dialéticos de articulação entre as pessoas, para o trânsito livre das mensagens de cada parte, pois elas se legitimam na cena pública.

Pensemos num grande desfile na Alemanha nazista. Nas tochas de fogo, nos uniformes elegantes, nos passos cadenciados, nas vozes uníssonas identificando o Fuhrer com a Nação e com o Direito. Nas estridências das Valquírias, na repetição permanente destes rituais onde o indivíduo desaparece. O “pensamento único” sobre, raça, religião, espaço vital, passado alemão, ódio ao diverso –judeus, ciganos, condição sexual- passam a ser os elementos que constituem a identidade do povo. Através de uma produção simbólica, cientificamente manipulada, a cineasta do nazismo Leni Riefenstahl, construiu uma estética onde o indivíduo não é livre para pensar. Ele desaparece. Através de emoções, que dispensam a reflexão, ele se uniformiza na irracionalidade do instinto. Na pós-modernidade contemporânea esta uniformidade é substituída pelo “mercado”. O “mercado” não quer, o “mercado” não gostou. O “mercado” puniu…

Pensemos na estética dos programas eleitorais de hoje, nos quais são usados rituais tecnológicos caríssimos, que obrigam os partidos a amealhar enormes recursos na competição para transmitir uma mensagem ao “mercado” da política. Pensemos na estética da notícia da grande mídia, cujos produtores fazem a mensagem, direta ou subliminar, que querem fazer , utilizando efeitos especiais: códigos que desinformam ou distorcem, que podem transformar qualquer mentira em verdade, qualquer verdade em mentira, para perseguir objetivos não revelados na notícia.

A grande conquista destas novas tecnologias com as suas técnicas especiais é que ambas podem servir para educar, informar, democratizar, em patamares que a humanidade jamais experimentou e, em parte, já servem para isso. Apenas numa parte muito restrita. Mas a grande tragédia é que elas, até agora, não contribuíram para mudar as relações de poder, na produção e na distribuição da informação, na produção e na distribuição da política, e estão transformando a mercadoria no bem supremo da felicidade e a política num ritual de mercado.

No espaço da política, com as novas tecnologias e as novas técnicas publicitárias, o sujeito político pode se apresentar apenas como uma mercadoria “melhor” que a outra. Pode dispensar a apresentação das suas convicções sobre como tratar os semelhantes e o futuro da comunidade, a qual o seu discurso se destina. Basta que ele comunique algo ao senso comum, que possa despertar confiança. Não num programa ou num propósito humanitário, mas na representação de um sentimento.

Na sociedade violenta em que vivemos, por exemplo, quem transmitir através de bons efeitos especiais nos programas eleitorais, que vai prover imediatamente segurança (embora todos saibam que é uma promessa vã!), terá mais sucesso do que aquele que falar sobre o tema dizendo que a questão da segurança só pode ser resolvida a médio ou longo prazo. É a técnica de convencimento substituindo a verdade e a política sendo substituida pela manipulação do medo. É verdade que estes métodos de disputa podem ser usados pelos dois lados, mas não é menos verdade que os dissimuladores dos seus propósitos -ou os que não tem propósitos claros- são os mais favorecidos pela possibilidade de “esconder o ator”. É o que pensava Cassavetes.

O remédio para este “déficit” democrático é mais democracia, não menos democracia. Mais política, não menos política. Menos força do dinheiro nas eleições, não mais “mercado” financiando campanhas eleitorais. Por isso, creio que um grande acordo entre as forças de esquerda e do centro democrático e progressista, no Brasil, deveria iniciar por fazer um cerco político ao Congresso, para ele votar rapidamente pelo menos o início de uma reforma política. Ela poderia começar proibindo o financiamento empresarial das campanhas e dos partidos, dificultando que os “sem propostas” ou com más propostas, se escondam nos caros efeitos especiais que hoje aproximam, cada vez mais, a política dos rituais do mercado e não dos desejos e sentimentos humanos que fazem o amálgama da democracia. Os partidos, todos, poderão se tornar mais autênticos e os que estão perdendo a autenticidade poderão tentar recuperá-la.


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