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9 de março de 2015
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11:39

Lembrando os Órfãos da Utopia

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Sul 21
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Lembrando os Órfãos da Utopia
Lembrando os Órfãos da Utopia

Por Tarso Genro

Há 22 anos atrás o professor Ernildo Stein publicou um livro brilhante –uma corajosa abordagem filosófica da crise e da identidade moral do socialismo- cujo conteúdo ainda faz muita falta nos debates que se travam, não só aqui no Brasil, sobre o esgotamento da ideia socialista plantada pela Revolução de Outubro. A chamada “queda da União Soviética” inicia um período de luto, pessimismo, perplexidade, revisão, não somente nos que professavam aquele modelo -como o ideal possível- mas também nos vários partidos simpatizantes, não comunistas e sociais-democratas de esquerda, em todo o mundo.

Não faltou, evidentemente, no campo da esquerda, os que simplesmente disseram que já sabiam que isso ia acontecer. E que “tinham razão”, nas críticas que faziam ao modelo da URSS, classificado como socialista-burocrático, moldado a partir da derrota de Trótsky no confronto com Stálin: a degeneração estaria amparada nesta derrota. A crise da própria identidade socialista, que perdura neste Século XXI, mostra que o assunto é muito mais complexo.

O livro do professor Stein vai fundo e se propõe a discutir com o seu “Órfãos da Utopia” (Ed. da UFRGS-1993), a crise do ideal emancipatório no “socialismo real”. Ela é analisada como sucedâneo da revolução soviética, não somente a partir da vulgarização das ideias de Marx – através do messianismo classista (proletariado como parteiro da História)- mas também a partir dos fundamentos filosóficos que sustentavam a utopia: o seu reflexo na política e os seus efeitos humanos, nos indivíduos-militantes destas lutas libertárias.

É óbvio que a contribuição do Professor Stein não esgota o assunto nem foi esse o seu objetivo. Os seis volumes dos “Cadernos do Cárcere”, de Antônio Gramsci, os doze volumes da poderosa “História do Marxismo” -coleção organizada e dirigida pelo professor Eric Hobsbawm- e o profundo estudo (766 pgs.) do historiador Geoff Eley, “Forjando a Democracia – a história da esquerda na Europa, 1850-2000”, constituem um poderoso arsenal crítico. São estudos destinados a ajudar na compreensão da crise da “utopia soviética” e também a reconstruir uma nova ideia socialista-democrática, já explorada por outros autores marxistas e neomarxistas, como Ernst Bloch e Herbert Marcuse.

Lembrar o livro do professor Stein, no momento em que as ideias de igualdade, solidariedade e dignidade humana, estão sendo arquivadas pelas austeridades que transitam no mundo, é importante para lembrar que, aqui mesmo, no Brasil e no Rio Grande, temos intelectuais de porte -tanto na academia como fora dela- que não só ousam desvendar a “corrente”, mas também contribuir na reflexão contra a “corrente”, ou seja: lutar contra a “naturalização” das desigualdades e a visão do fim da história.

Creio que a crise do projeto socialista e a vitória do ”modo de vida”, no interior do regime do capital, fundada no consumismo predatório e sem freios, na manutenção e aprofundamento das desigualdades, na naturalização das guerras de ocupação (para manter o controle das fontes de energia e demais riquezas naturais), na captura do estado pelo capital financeiro -através da especulação com a dívida pública dos países pobres ou menos desenvolvidos- esta crise, devolve para quem almeja um mundo mais humano, a questão das utopias.

Agora trata-se de uma utopia mais modesta, mas talvez mais realizável, nas próximas décadas: a utopia democrática, a utopia das promessas das luzes, a utopia dos princípios das Constituições Sociais, que começou lá em 1919, na República de Weimar, adquiriu seu apogeu em países como a Suécia, Dinamarca, Noruega, inspirou revoluções como a cubana, o socialismo democrático do Presidente Allende e agora se degrada nas trevas do sacrifício dos mais pobres, com a “austeridade” destes e os festins do cassino financeiro global.

Não foi verdadeira a previsão feita pelos gestores da “guerra fria”, que o mundo iria melhorar com o fim do bloco soviético. Melhorou, talvez, para os mais ricos e para quem aumentou o seu poder econômico e político global, com o enfraquecimento súbito do chamado polo socialista, que foi fundamental para arrancar do capital as concessões obtidas na socialdemocracia europeia. Para o resto dos mortais, ou piorou (como é caso do continente africano), ou ficou na mesma, com melhorias modestas nas regiões em que se instalaram governos que desafiaram, ainda que de forma tímida, a austeridade exigida pelos credores da dívida pública.

Não foi verdadeira, também, a previsão tanto do “fim da história” do professor Fukuyama, como as previsões dos “mercados prefeitos”, dos liberais tipo Hayek e Friedmann. As utopias de direita, do descarte da política pelo cálculo baseada na técnica econômica como ciência exata, e a consolidação da democracia liberal dos privilégios, pelo fim da História, estão, também, absolutamente falidas.

É possível ler e reler o livro do professor Stein e marcar divergências com ele. Mas é impossível deixar de considerá-lo como muito importante, para a retomada do pensamento emancipatório, com fundamento na igualdade e na liberdade. O socialismo não se realizou, diz o professor Stein, “por processos sustentáveis, tanto no estilo de dominação, como na organização da economia.” É pura verdade. Esta formulação é um ponto de partida e um ponto de chegada. Ponto de partida porque, como concreta, pode ser verificada empiricamente e aceita, independentemente de preferências ideológicas. Ponto de chegada, para o recomeço da propagação de uma ideia socialista com novos fundamentos na Liberdade e na República.

 


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