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24 de março de 2015
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11:13

As vozes elevadas no silêncio

Por
Sul 21
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"Em 11 de novembro de 1951 meu avô, que acompanhava diariamente o processo político nacional e mundial pelo antigo Correio do Povo e pelo Rádio, resolve escrever uma carta a Albert Einsten. Estava inquieto com a situação da comunidade judia no pós- guerra". Foto: Guilherme Santos/Sul21
“Em 11 de novembro de 1951 meu avô, que acompanhava diariamente o processo político nacional e mundial pelo antigo Correio do Povo e pelo Rádio, resolve escrever uma carta a Albert Einsten. Estava inquieto com a situação da comunidade judia no pós- guerra”. Foto (Reprodução de arquivo da família): Guilherme Santos/Sul21

Por Tarso Genro

Para falar sobre o tema do silêncio e da desunião em momentos de crise e chegar a eles de maneira sensata, vou falar um pouco da minha experiência pessoal-familiar em momentos históricos difíceis, que aparentemente nada tem a ver com o presente. Mas só aparentemente. Os pais do meu avô Hermann Herz (e dos seus irmãos Carl, Georg e Hilde), chamavam-se Julius Herz e Hermione Gerson, todos judeus nascidos na Alemanha. Meu bisavô Julius, então comerciante em situação de crise na cidade de Köthen (Anholt), estimulou que meu avô Hermann Herz, aos 24 anos, viesse para o Brasil.

Hermann, no ano de 1903, torna-se vendedor da firma de Hamburgo, S. Unger Jr. & Co. e casa-se com a minha vó, Julia Falkenberg, de família protestante. Ele a conhecera nas suas andanças de vendedor em Santa Maria: ele judeu agnóstico, ela originária de uma “pura” família alemã. Um dia eu perguntei ao meu avô se ele acreditava em Deus e ele me disse: “alguma força superior deu estabilidade ao caos do universo”. Uma opinião semelhante a de Einstein.

O casal Hermann e Julia vai morar em São Pedro do Sul, onde geram três filhos. Depois moram em Santiago do Boqueirão e, na metade dos anos 40, vão para São Borja, junto às filhas, Elly e Ilse, que já estão residindo ali, casadas. Os filhos de Hermann e Julia, Elly, Ilse e Walter Herz, incorporam como todos os seus filhos esta dupla tradição – judaica e cristã – originária daquela “mistura” eclética, transmitidas pelos pais.

Minha mãe Elly contou-me que estudara, na década de trinta, numa Escola Protestante em São Pedro do Sul. Ali o Pastor-professor da Escola – antes do início da Segunda Guerra, mas já com Hitler ditador da Alemanha – quis obrigar os alunos a fazerem a saudação nazista no início das aulas. Meu avô, Hermann, indignado, não só não aceitou tal disparate, mas, com a comunidade local, católica e protestante, demoveram o Pastor-professor das suas intenções sectárias e racistas. As vozes da comunidade se elevaram bem acima da miséria ideológica dos pequenos hitlers locais.

Em 1933 Gunter, o filho mais novo de meu tio-avó Carl Herz (o ex-Prefeito de Berlim-Kreusberg), que morara na Holanda, já fora deportado, em virtude da ocupação alemã naquele país, para o campo de Westerborck. Foi enviado a seguir para o campo de extermínio de Auschwitz, onde foi assassinado. Os avós maternos do meu avô foram deportados, no mesmo período, diretamente da Alemanha, pois não conseguiram sair do país durante a ascensão nazi. Acabaram também sendo mortos em Auschwitz.

Paradoxo. Em agosto de 1942 forma-se, para orgulho nacional, a nossa FEB, comandada pelo General Mascarenhas de Moraes e o Brasil inicia o preparo para combater na Itália dominada pelo fascismo. Na sequência, as autoridades da área da Segurança Pública do nosso país, até então tolerantes com os movimentos nazis nas colônias alemãs, recebem a ordem de “reprimir e vigiar” os alemães. Meu avô, judeu nascido na Alemanha, que até o final da sua vida sempre falou melhor o alemão do que o português ( já residente em São Borja), homem pobre e com parentes exterminados pela besta nazi, é preso pela “possibilidade de ser suspeito de espionagem em favor da Alemanha”.

Desta vez é a comunidade da cidade de São Borja, de todas as origens religiosas e políticas, que sai em socorro do judeu Hermann Herz, casado com a alemã “pura” Julia Falkenberg. Mobilizam-se e mostram o óbvio ao Delegado de Polícia: era impossível um judeu antinazista ser um espião nazista. A comunidade assume, então, a responsabilidade pela “liberdade vigiada” do meu avô, que lhe é concedida pela Polícia mandatada pela ditadura do Estado Novo. É o mesmo Estado que antes havia deportado Olga Benário, para morrer nos campos de concentração de Hitler. Ali em São Borja, mais uma vez, um ato simples de afetividade comunitária rompe a passividade e o silêncio contra as trevas do ódio e do preconceito.

"Einstein respondeu ao meu avô Hermann, dizendo que “com a escolha cuidadosa do conteúdo, a aula de religião judaica pode ser estruturada de modo a ter significativo valor educacional, sem prejuízo intelectual ou obscurantismo”.  Foto: Guilherme Santos/Sul21
“Einstein respondeu ao meu avô Hermann, dizendo que “com a escolha cuidadosa do conteúdo, a aula de religião judaica pode ser estruturada de modo a ter significativo valor educacional, sem prejuízo intelectual ou obscurantismo”. Foto: Guilherme Santos/Sul21

Em 11 de novembro de 1951 meu avô, que acompanhava diariamente o processo político nacional e mundial pelo antigo Correio do Povo e pelo Rádio, resolve escrever uma carta a Albert Einstein. Estava inquieto com a situação da comunidade judia no pós- guerra, com o ensino religioso fundamentalista nas escolas judias e com a luta que já se travava para a formação Estado de Israel. E o mais patético: meu avô escreve lá dos confins de São Borja e Einstein responde, de Princeton, onde pesquisava e dava aulas!

Einstein – que não concordava com a formação de um Estado Judeu baseado na religião e na “raça”, pois defendera um convívio fraterno dos árabes com os judeus, num só Estado – respondeu ao meu avô Hermann, que “com a escolha cuidadosa do conteúdo, a aula de religião judaica pode ser estruturada de modo a ter significativo valor educacional, sem prejuízo intelectual ou obscurantismo”, argumentando a necessidade da comunidade judia preservar sua cultura e religião, acentuando “o sentido da coletividade e da solidariedade entre os judeus, para enfrentar a situação da melhor forma possível”.

Não me lembro, sinceramente, qual foi a posição do meu avô sobre o assunto. Só soube desta carta e da resposta de Einstein depois que Hermann Herz faleceu. Tivemos – eu e o meu avô – raras conversas políticas, pois minha mãe não só pedia que eu omitisse, para ele, as minhas atividades contra a ditadura, como também, ela mesma, escondeu do meu avô o meu exílio no Uruguai, em 1971, informando-lhe que eu estava “estudando fora”. Nos 92 anos de idade do meu avô, a ordem, na nossa casa – onde ele morava conosco – era poupá-lo de quaisquer notícias amargas, que pudessem lembrá-lo da situação da Alemanha.

Minha mãe e meus tios promoveram a vinda, a Santa Maria, do seu irmão mais novo Georg, no ano de 1973. Eles se reencontravam quase setenta anos depois da separação. Eu assisti este encontro e me lembro exatamente como foi. Eles, apertando as mãos, sentaram-se e imediatamente começarem a falar, como se superassem uma breve interrupção. Falaram sobre a família dissolvida pela guerra, as separações, as perdas originárias da fúria nazista, as recuperações de vida, num misto de tristeza, nostalgia e alegria pelo reencontro.

“Nixon é igual a Hitler” disse, certa feita meu avô, quando eu passava pela sala onde todas as tardes ele lia o Correio do Povo e dizia, indefectivelmente, “nada de novo!” (O que era levemente ironizado pelo meu pai: “se nunca tem nada de novo, não sei por quê ele lê o Correio todos os dias”). Refletindo sobre este “nada de novo” – que igualava a morte das crianças no Vietnam, pelo napalm democrático de Nixon, ao martírio das crianças judias e não judias nas câmaras de gás – vejo que o meu avô, de certa forma, tinha razão. “Nada de novo!”

Leio, nos jornais da semana, que um quadro importante do Ministério Público Federal propõe, se é verdadeira a notícia, a “proscrição” de partidos políticos que se envolvam em atos de corrupção. A proscrição de uma organização política, cuja representação não envolve apenas seus militantes e filiados, mas atinge uma comunidade indeterminada de pessoas, com vínculos ideológicos e programáticos, simpatizantes, eleitores ocasionais ou permanentes, é puro fascismo. É responsabilização, através de uma pena política coletiva, de um grupo indeterminado de indivíduos, que sem culpa e sem dolo, são membros da comunidade partidária.

O grave é que tal atitude do MP se inspira no que já vem sendo feito pela mídia oligopolizada. Esta, não só vem demonizando os partidos e a política em geral (menos a política que eles fazem todos os dias nos seus pré-julgamentos), mas também vem espetacularizando as ações do Ministério Público e dos Tribunais, segundo os seus interesses políticos imediatos.

Pela proposta normativa do MP, qualquer um poderá ser punido politicamente, sem qualquer vínculo com atos de corrupção, por ser PT, por ser PP, por ser PMDB, DEM, PC do B, PDT, PTB, através da “proscrição” do seu partido, por ações cometidas por terceiros! Ora, o Ministério Público Federal pedir abertamente a possibilidade legal de “proscrição” de Partidos, instituindo uma penalização grave a comunidades políticas indeterminadas, neste quadro, já não surpreende, mas deve ser objeto de crítica. “Nada de novo!” , diria o meu avô.

O fato só prova que mesmo na democracia se pode ir mais além, até o arbítrio total, pervertendo-a e sufocando-a por dentro. Talvez seja por isso que o meu avô repetia sempre o seu “nada de novo!”, quando lia as notícias sobre a guerra do Vietnam e lembrava de Hitler, dos campos de concentração, da punição sem culpa e das mortes que o nazi-fascismo promoveu no Século passado. Hermann Herz, longevo que foi, morreu aos 99 anos, em 1978. Algumas vozes, às vezes, devem ser retiradas do seu silêncio imemorial para inclusive serem contestadas.

Tomara que tenhamos algo “de novo”, sim, no país. E que a luta comum contra a corrupção, que compartilham pessoas de todas as formações políticas seja vitoriosa dentro da democracia. Não seja apenas uma desculpa para invencionices que levam um fascismo, que é latente, em todas as sociedades em crise, a erguer-se como fascismo “estatal”, legitimado pelos Juízes. Como, aliás, ocorreu na Alemanha.

Tarso Genro foi governador do Estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, Ministro da Justiça, Ministro da Educação e Ministro das Relações Institucionais do Brasil.


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