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31 de março de 2015
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11:29

Amor líquido enquanto agonizo

Por
Sul 21
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Amor líquido enquanto agonizo
Amor líquido enquanto agonizo

Por Tarso Genro

Quero compartilhar com vocês o pensamento de dois grandes intelectuais humanistas. O primeiro, o pensamento de um homem de esquerda, Zygmunt Bauman, sobre a “fragilidade dos laços humanos”. O segundo, de William Faulkner, um grande escritor humanista que, como é sabido, não precisou ser necessariamente de esquerda, para ser grande. O pensamento de Faulkner busquei no seu romance, “Enquanto agonizo”, para mim um dos melhores, senão o melhor da sua vasta produção literária. O pensamento de Bauman, trago do seu grandioso “Amor Líquido”, provavelmente o livro que melhor condensa sua límpida visão sobre a vida baseada no consumismo e na descartabilidade, nesta etapa ainda mais violenta e desumana do sistema-mundo do capital.

Baumann, discutindo a fragilidade dos laços humanos -ressecados pela religião do mercado, em detrimento do ideal humanista da dignidade humana- lembra uma resposta dada por Madeleine Albright, então Embaixadora dos Estados Unidos na ONU, numa entrevista à CBS. Questionada sobre as quinhentas mil crianças mortas, no Iraque, em decorrência do continuado bloqueio militar imposto pelos EEUU, a Sra. Albright não nega o número de mortes nem o fato. Mas diz: “Achamos que era um preço que valia a pena ser pago.”

Quase ao final do romance “Enquanto agonizo”, o personagem Cash, de Faulkner, no fim da longa viagem em que uma família carrega o caixão com o corpo da mãe, para ser sepultada numa cidade distante, pensando sobre a sanidade ou insanidade das pessoas, conclui: “Não importa muito a maneira como um homem age, e sim a maneira como a maioria das pessoas olha-o enquanto ele age.”

A advertência do personagem de Faulkner dá fundamento à resposta de Madeleine Albright que, de resto, representava a posição de um Governo, mais propriamente de um Estado e, muito provavelmente, da maioria dos cidadãos americanos. A maneira pela qual a maioria do ocidente “olhava” o bloqueio ao Iraque justificava, aos olhos da Embaixadora, a contabilidade necrófila sobre o “preço”: a vida de 500 mil crianças!

A maneira como “a pessoa age”, contrastada com a forma que “as pessoas veem”, encerra todo o dilema moral da política republicana. Porque a “forma” de ver aquilo que é feito pelas pessoas -em funções de estado ou a “forma” de ver como as pessoas se comportam na vida comum- é o que compõe a memória social. Como tal, a seguir, esta memória tende a tornar-se a base da moralidade pública e integrar-se no comportamento coletivo.

O como é “feito” e o como é “visto”, integram-se e formam o que se convencionou chamar de “moralidade média”. Esta moralidade média, tanto pode resultar em apoio a linchamentos, por exemplo, como pode resultar no “não sabia”, sobre os campos de concentração na época do nazismo, ou na indignação contra a guerra do Viet-Nam, como ocorreu na década de 60.

Se eu considero que a vida de 500 mil pessoas-especialmente crianças sobre as quais não pode recair nenhum tipo de responsabilidade histórica sobre conflitos- pode ser “precificada”, a vida de cada uma delas adquire um determinado “valor” monetário, do qual pode ser deduzido um “preço”. E a importância única, de cada vida singular, pode tornar-se -neste processo- relevante ou irrelevante, a partir de critérios puramente econômicos. A este raciocínio podem ser opostas duas objeções de fundo: uma objeção de caráter quantitativo, outra de caráter qualitativo, ambas desnudando a ideologia fascista, meramente “técnica”, por assim dizer, da posição da Embaixadora e do seu Governo.

Argumento quantitativo: quando argumento que, com a morte de quinhentas mil crianças no Iraque, evito a morte de 550 mil crianças em outro lugar do mundo (que supostamente ocorreria sem o bloqueio) estou externando apenas uma “pretensão”, que jamais poderei provar seus efeitos reais; portanto, só estou externando uma “hipótese” e testando-a, com a morte certa de 500 mil crianças. Argumento qualitativo: as pessoas não podem ser escravizadas, porque não são “coisas”, muito menos podem ser consideradas intercambiáveis, porque não podem ser “precificadas”, não só na sua singularidade, como também enquanto gênero; assim, as 500 mil crianças representam o gênero humano, não porque são um grupo de quinhentas mil, mas porque cada unidade, cada uma delas, é um pedaço da humanidade.

Neste tempo em que aparecem indignados para todos os gostos e de todas as ideologias é de estranhar que os grandes meios de comunicação, sempre tão solícitos com as indignações ao gosto das suas ideologias “liberais”, não deem importância a milhares de fatos similares a estes, abordando o “ponto de vista” das crianças com fome e medo, nos territórios da austeridade.

Tarso Genro foi governador do Estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, Ministro da Justiça, Ministro da Educação e Ministro das Relações Institucionais do Brasil.


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