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24 de fevereiro de 2015
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11:45

Sobre a liberdade de escrever

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Sobre a liberdade de escrever
Sobre a liberdade de escrever
Erico Verissimo deve ser muito lembrado num momento como esse, em que os princípios volúveis tomam conta e a coerência se torna mais rara do que já foi.
Erico Verissimo deve ser muito lembrado num momento como esse, em que os princípios volúveis tomam conta e a coerência se torna mais rara do que já foi.

Por Tarso Genro

Quando fixei residência em Porto Alegre, no início do ano de 1973, confessei ao querido amigo já falecido, Laci Osório, que o meu maior desejo como pretenso intelectual e ativo militante da esquerda “radical” (como dizem hoje alguns colunistas para estigmatizar a esquerda), era conhecer Erico Verissimo. Eu achava, sinceramente, que se tratava de um projeto impossível, mas o poeta Laci — ativo militante do velho partidão, admirador sem reservas e amigo de Érico — logo providenciou o encontro.

Quando o dia “D” chegou eu estava bastante tenso. Levava — juntamente com o Laci — um pequeno volume de poesias “sociais” de minha autoria, de valor duvidoso, para presentear ao nosso anfitrião. Erico sempre recebia visitas no fim da tarde. Conversava descontraído, valorizando o interlocutor e semeava, com a sua voz pausada de contador de estórias, a grandeza intelectual e moral com que levava a sua vida de escritor e cidadão.

Repeti a visita algumas vezes e ainda cumpri uma tarefa que a minha mãe, Elly, que me despertou o gosto pela leitura, me havia comissionado: “quero conhecer o Erico!”, ela mandou. Quando lhe contei das minhas já duas visitas na Felipe de Oliveira, certamente ela pensou que isso seria fácil. E foi. Falei com a Mafalda e ela, no ato, marcou a hora para o nosso novo encontro.

Lá fui com a minha mãe, numa bela tarde de 74, visitar Erico Verissimo. Foi um episódio emocionante e Mafalda, quando abriu a porta para nos receber, disse uma frase que aumentou meu prestígio intelectual na família: “Tarso, o Erico já estava sentido falta da tua visita.” Evidentemente que a sensibilidade humana da Mafalda inventou o “sentir falta”, para prestigiar um jovem projeto de escritor, recentemente vindo de Santa Maria, que trazia a mãe para conhecer o seu marido e brilhante escritor. A grandeza humana de Mafalda não ficava um milímetro abaixo do Erico.

Lembrei-me de Erico, neste momento, a propósito de uma magnífica entrevista concedida por ele em 1967, a Adolfo Braga. Nela, discorria sobre seu último livro então lançado, “O Prisioneiro”, e justificava o tema escolhido (guerra do Vietnã), fazendo referência a um dos personagens do romance, o Tenente negro, torturador do vietcong aprisionado e sob inquisição: “Ao escolher para o papel de inquisidor um tenente negro, eu também pude incluir na minha história o problema do homem de cor norte-americano. Existem 30% de soldados negros lutando no Vietnã. Eles defendem uma civilização que os repudia e esse é um dos absurdos de toda essa situação. Estamos em tempo de guerra, injustiças, absurdos, equívocos, mortes e destruição. É natural que tudo isso sensibilize um escritor que não vive numa torre de marfim.”

Erico caracterizava a agressão norte-americana ao Vietnam, na mesma entrevista, como “uma guerra ideológica, mas é sobretudo uma guerra de disputa econômica, de trustes e cartéis.” Hoje os “trustes” e “cartéis” estão um pouco invisíveis, pois quem fala diretamente são as agências de risco e suas estruturas privadas de caráter especulativo, comandando diretamente as ações dos Governos. Mas as mortes, o absurdo e a destruição, permanecem iguais ou piores.

Na mesma entrevista, questionado sobre a situação de ser um escritor “alienado”, o autor do “O Tempo e o Vento”, “Senhor Embaixador”, “O Prisioneiro”, “Caminhos Cruzados” diz, não sem alguma ironia benigna: “Veja você: Engels, que não foi propriamente do PSD, disse que Balzac, com seus romances, prestou mais serviços a causa do socialismo, mesmo sendo um conservador, do que se escrevesse panfletos políticos.” Para quem não lembra, o grande crítico do modo de vida burguês e da superficialidade que caracterizava a vida burguesa do Século 19, Honoré de Balzac, era ideologicamente um reacionário e politicamente um legitimista antirrepublicano.

Luis Fernando Veríssimo abre o livro de entrevistas em que me apoio (“A liberdade de escrever”, Edipucrs e Ed. da Ufrgs) com uma precisa e sintética apresentação, como é do seu feitio, dizendo que o personagem principal das entrevistas, além de dar um testemunho sobre o seu tempo “manteve uma coerência também rara numa época de princípios volúveis”. Erico Verissimo deve ser muito lembrado num momento como esse, em que os princípios volúveis tomam conta e a coerência se torna mais rara do que já foi.

Coerência rara em época de princípios volúveis! Frases como esta, com a capacidade de sintetizar exigências mínimas para todo um período de lutas, recuos, dificuldades, com matizes e relações dissolvidas pela descartabilidade, crescente indiferença pela a morte, a dor, a tortura — na “sociedade líquida” como diz Zigmund Bauman — frases como essa, poderiam ser tuitadas nas redes todos os dias. Elas ajudariam as pessoas a refletirem, a não se ofenderem, a não trocarem o argumento pelo ódio e o ataque político pela difamação.

O tipo de crise que atravessa o capitalismo, com a substituição dos valores do trabalho pela possibilidade do enriquecimento sem trabalho, a substituição de uma sociedade produtora de bens necessários para a reprodução de uma vida digna por uma sociedade de consumo irracional e predatória, só pode ser resolvida com a formação de uma consciência majoritária na sociedade. É a consciência do abismo. De um abismo para todos, de todas as classes, de todos os ritos religiosos, de todos os territórios. A consciência de que tudo poderá terminar para os nossos filhos e netos, como disse T.S. Elliot, não “com um estrondo, mas com um gemido.” Dezenas de Ericos fariam um bem enorme ao nosso Brasil.

Tarso Genro foi governador do Estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, Ministro da Justiça, Ministro da Educação e Ministro das Relações Institucionais do Brasil.


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