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18 de fevereiro de 2015
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10:12

Alberto Morávia e o Parlamento

Por
Sul 21
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Alberto Moravia: “O Parlamento europeu é uma instituição e, como tal, em tempos de rotina normal, pode até dar impressão de ser inútil (…) mas as instituições só mostram o que valem nos momentos de crise”.
Alberto Moravia: “O Parlamento europeu é uma instituição e, como tal, em tempos de rotina normal, pode até dar impressão de ser inútil (…) mas as instituições só mostram o que valem nos momentos de crise”.

Por Tarso Genro

Alberto Morávia nasceu em 1907 e faleceu em 1990. Amigo de Enrico Berlinguer, chegou a ser deputado no Parlamento Europeu na lista do PCI e foi, juntamente com Norberto Bobbio e o mesmo Berlinguer, uma das cabeças europeias mais luminosas da segunda metade do Século XX. Comentando a notoriedade que adquiriu, a partir das suas frequentes aparições na TV relatou que, certa vez, uma jovem foi ao seu encontro gritando: “Nem pode imaginar como fico feliz em conhecê-lo; quem é o senhor?” É dele também, que atravessou o fascismo como opositor, a seguinte frase: “Uma ditadura é um estado em que todos tem medo de um e cada um tem medo de todos”.

Irônico sem ser ofensivo, mordaz sem desqualificar o adversário, conhecedor profundo da cultura e da política europeia, transformou os artigos da sua coluna “Diário Europeu”, publicada no jornal “Corriere della Sera”, num livro que logo se tornou logo célebre. A obra foi publicada com o mesmo título da coluna, em 1993, pela Editora Fabbri, de Milão; depois foi traduzida e publicado no Brasil, em 1995, pela Bertrand.

Tudo no livro é vivo, inteligente e informativo, mas tem um sabor especial as suas observações sobre dois temas candentes à época e até hoje: a decadência da URSS, como ideia socialista hegemônica na Europa e depois no mundo, e a União Europeia em formação e crise de afirmação, como se vê, aliás, ainda nos dias de hoje.

Vou comentar uma resposta que Morávia ditou a um dos jornalistas que vagavam em busca de notícias no Parlamento Europeu, em outubro de 1987. Certamente era um período meio modorrento da casa, mas vale a pena porque -segundo Morávia- as perguntas que lhe endereçavam não eram as mesmas propostas aos “políticos” profissionais. Por ser escritor, ele provocava perguntas, digamos…diferentes, dos jornalistas de plantão, mas nem sempre muito inteligentes. Talvez isso coincidisse com o início do “jornalismo de pegadinhas”, no qual o jornal não publica a pergunta feita pelo repórter ao entrevistado-vítima, mas divulga apenas a resposta, situando-a -como frequentemente ocorre- no contexto depois arbitrado pelo editor.

A pergunta brilhante foi: “O que o sr. acha do Parlamento Europeu?” A resposta, modesta e levemente mordaz foi: “O Parlamento europeu é uma instituição e, como tal, em tempos de rotina normal, pode até dar impressão de ser inútil (…) mas as instituições só mostram o que valem nos momentos de crise”. Um editor mal intencionado poderia produzir a seguinte manchete: “Morávia diz que Parlamento só não é inútil em momentos de crise”. Ou poderia tentar outra: “O Parlamento é normalmente inútil, segundo Morávia.” Ou, ainda, uma terceira: “Morávia: a rotina do Parlamento é inútil”. Todas elas poderiam ser fundamentadas na fala textual de Morávia, mas nenhuma delas revelaria a verdade do seu pensamento.

O que ele disse, claramente, foi o seguinte: “os parlamentos são fundamentais nas crises e ali é que eles podem mostrar o seu valor.” Na verdade, a resposta de Morávia é muito profunda e só aparenta ser irônica, nos dias que correm, porque as instituições do Estado e todos os seus poderes estão sob uma crítica feroz e destrutiva de um poder sufocante que constitui, em certo sentido, um partido “novo tipo” na crise da democracia: os oligopólios midiáticos. O seu poder ainda não foi completamente desnudado e os seus efeitos negativos, para a permanência do Estado fundado no Direito e na soberania dos seus poderes institucionais, ainda estão meio opacos para o senso comum.

Não se trata, como querem fazer crer alguns néscios, de defender que deve ser instituída qualquer tipo de censura ou controle de conteúdos, fora do que a Constituição Democrática já estabelece. A questão é muito diferente: as instituições, os grupos políticos, os agentes políticos, os movimentos sociais, tem “o direito” de promover a mesma crítica radical aos donos, aos interesses, aos negócios, às instituições privadas da mídia, que aqueles grupos promovem contra si? A resposta é sim: igualdade formal, portanto, registrada.

Mas, prossigamos. Estas instituições da sociedade civil e do estado, grupos, partidos, etc. … tem o mesmo “poder”, que a grande mídia tem por concessão pública, de fazer circular as suas críticas, avaliações sobre os seus negócios e a ética empresarial dos donos e das instituições da mídia? A resposta é um rotundo não. A potência de ambos os “lados”, para divulgar amplamente as suas opiniões, é completamente diversa e isso gera uma profunda deformidade na política, no âmbito da democracia.

Quais deformações? Primeiro, quem tem mais possibilidade de divulgar suas opiniões tem a maior possibilidade de definir a natureza das agendas, que devem ser colocadas na pauta política? Quem tem mais capacidade de comunicar suas opiniões -falo nos grandes grupos de interesses econômicos e financeiros dos quais dependem as cadeias de comunicação- tem também mais capacidade de omitir e proteger-se? Quem tem maior capacidade de escolher e selecionar fatos para informar, tem a maior capacidade artificializar conflitos, sobrevalorizá-los, ou não, criando ou dissolvendo “clamores públicos”, de acordo com a sua hierarquia de valores.

É óbvio que os grupos de poder econômico e político que transacionam com a mídia, nem sempre são os mesmos. Isso depende das contingências políticas, de um lado, e de quais os setores, tanto de parte da mídia como dos grupos econômicos propriamente ditos, que são mais fortes ou estão disponíveis para “acordos” em torno dos “princípios” do momento. Hoje, os grandes temas, em torno do qual circulam os acordos são os seguintes: a natureza do “ajuste”, o retorno a políticas, não somente ortodoxas, mas tipicamente neoliberais como adotaram a maioria dos países da Europa, a crítica a qualquer forma de participação popular, a não regulamentação da mídia e a continuidade da manipulação do preço da dívida pública, para continuar alimentando o enriquecimento sem trabalho.

Os partidos e os políticos da “vez” (tanto para bajulá-los, como para denunciá-los, justa ou injustamente) hoje, estão sendo selecionados em torno destes temas e os reflexos, na base parlamentar do Governo e da oposição –golpista ou não- já se fazem sentir. Ao contrário da recomendação de Morávia, neste momento o nosso Parlamento, pela sua maioria, está fretado pela pauta da grande mídia. Não demonstra nenhuma grandeza na crise. Conjugam-se os que tem contas a ajustar e tem medo de serem a “bola da vez”, com os que concordam com a restauração neoliberal, que, aliados aos que não tem pendências morais, mas tem medo de serem envolvidos de forma manipulatória, formam uma expressiva maioria.

Na verdade estamos transitando para um processo de unificação dos Poderes de Estado no juízo formulado pela grande mídia, a respeito de qualquer tema. Este novo “um”, que a maioria tem medo, radicalizou de tal forma a crítica aos partidos, aos políticos, à política –logo, ao Estado em geral- que “cada um” também está começando a ter medo de todos. E a política está se tornando cada vez mais um grande espetáculo. Por enquanto é um drama, mas pode virar uma tragédia.

(*) Tarso Genro foi governador do Estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, Ministro da Justiça, Ministro da Educação e Ministro das Relações Institucionais do Brasil.


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