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28 de agosto de 2020
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18:34

Reforma tributária, mais do mesmo que não deu certo

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Sul 21
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Reforma tributária, mais do mesmo que não deu certo
Reforma tributária, mais do mesmo que não deu certo
Governador Eduardo Leite (PSDB). Foto: Felipe Dalla Valle/Palácio Piratini

Sergio Araujo (*)

“Não prenda, não aperte e não sufoque.
Porque quando virá nó, já deixou de ser laço”.

Mário Quintana

O governador Eduardo Leite previu o caos das contas públicas do estado do Rio Grande do Sul caso o projeto de lei que propõe a reforma tributária, por ele encaminhado à Assembleia Legislativa, não seja aprovado. Não sou economista, por isso não questiono os números da crise. Nem mesmo conheço a índole e o caráter do jovem político, por isso não posso duvidar das suas boas intenções. Mas questiono o método da propagação da dita calamidade enquanto agente motivador da transformação desejada.

Talvez o jovem governador desconheça, ou talvez até saiba, por ser um aplicado estudioso do universo político, que todos os governantes de feição liberal que passaram pelo Piratini, a começar por Antônio Britto, usaram do mesmo artifício para conseguir a aprovação dos seus projetos de desestatização da máquina pública e de aumento de impostos. E todos eles (os artifícios), indistintamente, creditaram os problemas financeiros do erário ao serviço e ao servidor público.

Na gestão de Britto, quando Eduardo Leite ainda era um pré-adolescente em Pelotas e os ventos do neoliberalismo começavam a soprar pelo Rio Grande, foi realizada a primeira bravata catastrófica das finanças públicas. Na época, o governador peemedebista declarou que para sanear as contas do Estado e promover o desenvolvimento seria necessário privatizar estatais e autarquias, conceder serviços públicos e oferecer benefícios fiscais para atrair grandes empresas automobilísticas.

E assim foi. Com apoio da ampla base aliada no parlamento gaúcho, a CRT e a CEEE foram privatizadas, rodovias foram concedidas e os usuários passaram a ter que pagar pedágio, e a GM instalou uma montadora em Gravataí. Ocorre que se para o empresariado o governo Britto foi afortunado, o mesmo não pode ser dito da atuação do governador, que não conseguiu se reeleger, e das finanças públicas, que continuaram deficitárias, apesar do governador ter entregue à iniciativa privada as “joias da coroa”.

Ainda na carona do liberalismo econômico, o PMDB conseguiu, em 2003, com Germano Rigotto, retomar seu projeto de enxugamento da máquina pública e de supressão das conquistas trabalhistas do funcionalismo estadual. Com uma estratégia bem menos impetuosa e agressiva que a de Antônio Britto e que ficou conhecida como “paz e amor”, Rigotto concluiu seu mandato sem grandes realizações e sem conseguir o equilíbrio das contas públicas. E, a exemplo de Britto, também não conseguiu a reeleição.

Mas a saga liberal teve seguimento com a sucessora de Rigotto, a tucana Yeda Crusius. Economista por formação, a representante do PSDB atuou como se estivesse predestinada a equilibrar a receita e a despesa do Estado. E assim atuou durante toda a sua gestão. Embora não tenha conseguido resolver o problema da impagável dívida para com a União, Yeda se vangloriou de, mediante cortes de gastos e redução de investimentos, ter alcançado a meta do “déficit zero”.

Essa decisão de se voltar para dentro, de governar o governo, aliada ao temperamento difícil da governadora, acabou desagradando não apenas os grandes empresários, que esperavam por mais beneficies do poder público, mas também os servidores, que através dos seus sindicatos travam duras batalhas para não perder conquistas históricas. Mesmo não tendo produzido grandes resultados a tucana tentou a reeleição e, seguindo a tradição dos seus antecessores liberais, foi fragorosamente derrotada nas urnas.

Em seu lugar entrou um especialista em privatização e desmonte da máquina pública, o peemedebista (novamente eles) José Ivo Sartori. Com a experiência dos governos Britto e Rigotto, Sartori adotou uma gestão híbrida, metade ousada (Britto), metade paz e amor (Rigotto). E com o velho discurso de que o RS estava quebrado financeiramente, retomou o habitual enxugamento do Estado, conseguindo o feito de superar todos os governantes liberais que o antecederam.

Com uma base governista composta por 60% dos deputados estaduais, Sartori extinguiu autarquias e fundações, diminuiu o número de secretarias, aumentou impostos, demitiu servidores e congelou e parcelou os salários do funcionalismo estadual – situação que perdura até hoje – e tentou infrutiferamente resolver a questão do endividamento do Estado para com a União. A política privatista e impopular acabou com seu sonho de reeleição.

Mas se o MDB entrava, mais uma vez, no seu período sabático, o liberalismo econômico tratava de gestar mais um representante para ocupar o maior cargo público do RS, Eduardo Leite, que em 2004, então com 19 anos, havia se filiado ao PSDB e que teve uma carreira política meteórica, se elegendo vereador em Pelotas, depois prefeito e em 2018, governador.

Apenas 20 meses no cargo, o primeiro representante político da geração neoliberal a ocupar a ocupar o Piratini repete a cantilena dos seus antecessores. Com amplo apoio da sua base aliada, conseguiu acabar com a histórica resistência contra a privatização da Sulgás, da CRM e do que sobrou da CEEE; implantou a reforma administrativa que cortou vantagens dos servidores estaduais e aumentou as alíquotas das suas contribuições previdenciárias; e agora quer realizar uma reforma tributária.

Pois bem, é aí que eu foco o interesse de toda essa análise temporal. Qual o argumento que Eduardo Leite está utilizando para convencer deputados, empresários, imprensa e a sociedade da imperiosa necessidade da reforma? A mesma de sempre. Que se a reforma não for aprovada será o caos das finanças públicas. Na prática, segundo o governador, isso significa a prorrogação das alíquotas do ICMS vigentes, que ele prometeu na campanha eleitoral que retornariam aos percentuais originais; a diminuição dos repasses aos municípios; o colapso dos serviços públicos; atrasos ainda maiores no pagamento dos salários e, claro, a continuidade do parcelamento (que ele prometeu acabar no fim do seu primeiro ano de governo); a suspensão das nomeações previstas para as áreas da segurança; o corte nos investimentos; a inadimplência nos repasses para a saúde; e a impossibilidade do RS aderir ao regime de recuperação fiscal do governo federal.

Trata-se, como se percebe, da “tempestade perfeita” para convencer até os mais céticos de que a tal reforma tributária, mais do que necessária, é imprescindível e urgente. O que não é dito é que a tal tragédia anunciada não passa de um eco do que já foi ouvido no passado. Quem não lembra da declaração do ex-secretário da Fazenda, Giovani Feltes, que que no primeiro mês do governo Sartori disse que ““se o RS não conhecia o caos, agora iria conhecer”? Pois então, das medidas para evitar o pior e que não deram em nada, resultou o esfacelamento da máquina estatal e o empobrecimento e a desmotivação do funcionalismo.

E é aí que está o xis da questão. O tal “canto da sereia”, proferido pelos “profetas do apocalipse”, de que o Estado precisa cortar a carne a própria carne para que o RS sobreviva, até agora não passou de discurso vazio, pois há duas décadas e meia que isso vem sendo feito e a situação caótica das finanças continua e se agrava a cada ano.

Não por culpa do produtor rural, que continua sustentando a economia gaúcha. Nem do trabalhador urbano, tratado pelo Mercado como mero e descartável serviçal. Ou do pequeno e médio empresário, sufocado pelo pagamento de impostos. Sequer do contribuinte, assoberbado pelo pagamento de impostos, tributos e taxas. E menos ainda do servidor público, injustamente responsabilizado pela aplicação das políticas públicas equivocadas, adotadas por governantes despreparados ou mal intencionados.

Então basta de terceirizar responsabilidades. Chega de ameaças e de desculpas esfarrapadas. Fosse verdadeira a alegação de que a culpa do desequilíbrio das finanças públicas é do serviço e do servidor público, todo o desmantelamento realizado pelos governadores liberais nos últimos 25 anos já teria dado resultado. E não deu. Por isso repito, basta! Chega de cantilenas pessimistas e tergiversações irresponsáveis.

Governador Eduardo Leite, prove que o senhor é mesmo um agente público que preza o diálogo. Ouça mais e fale menos. E, se possível, use a sua jovialidade, a sua carreira política ascendente e a sua criatividade e ousadia, para encontrar soluções que fujam da mesmice de sempre, pois os gaúchos já estão cansados dessa retórica improdutiva e dissimulada, governo após governo, onde o culpado e a vítima são sempre os outros e o algoz é sempre o mesmo. E não esqueça de que a principal função do poder Executivo é administrar os interesses públicos. Nesse sentido, gente não é número, nem cifra, gente é ser humano.

(*) Jornalista

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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