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4 de junho de 2020
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16:32

Democracia, o grito da resistência

Por
Sul 21
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Democracia, o grito da resistência
Democracia, o grito da resistência
Ato na Avenida Paulista em defesa da democracia. Foto: Bancada Ativista

Sergio Araújo (*)

Em meio aos protestos que incendeiam os EUA por conta do brutal assassinato de George Floyd pela truculenta polícia americana, Donald Trump vai a pé até uma igreja localizada na frente da Casa Branca. Na noite anterior o templo fora alvo dos manifestantes que protestavam contra a morte de Floyd e pediam o fim da violência policial contra os afrodescendentes. De lá, mostrando uma Bíblia, pousou para fotos e prometeu conter as manifestações. Sabem, como? Usando as Forças Armadas. Ou seja, para acabar com os protestos contra a violência da polícia o presidente americano vai usar de mais violência policial.

Soube-se depois, pela pastora da igreja, que Trump jamais havia colocado os pés no templo religioso. Mais, viu-se pelos canais de televisão que o passeio presidencial fora antecedido por uma desocupação humana do local mediante o uso de bombas de efeito moral e gás lacrimogêneo. Ou seja, foi uma ação de marketing estilo Bolsonaro: Deus na boca (no caso de Trump, Bíblia na mão) e o demônio no coração.

Dois dias antes, no Brasil, foi a vez de Jair Bolsonaro demonstrar, mais uma vez, sua semelhança com o seu ídolo americano. Embarcou num helicóptero oficial, sobrevoou a Praça dos Três Poderes, desceu da aeronave, montou num cavalo da polícia militar do DF e desfilou garbosamente diante da sua claque fanatizada, que realizava um novo protesto reivindicando a volta do regime militar e o fechamento do Congresso e do STF.

Enquanto isso, em São Paulo, na avenida Paulista, torcidas organizadas de clubes de futebol que protestavam contra a escala do autoritarismo e defendiam o regime democrático foram dispersadas pela polícia militar com bombas de efeito moral e gás lacrimogêneo.

Paradoxalmente, do outro lado da mesma avenida, um pequeno contingente de bolsonaristas, portando tacos de beisebol e bandeiras de organizações fascistas, realizavam seu protesto em resoluta tranquilidade, protegidos por policiais que quando solicitados posavam para selfies com gestos de simpatia e expressões faciais de satisfação.

Em meio a estes cenários, onde coincidentemente Bolsonaro e Trump demonstram estratégias convergentes de dominação e divisão popular pelo medo, os dois presidentes se assemelham pelo desprezo ao sofrimento provocado pela pandemia provocada pela covid-19. Nenhuma manifestação solidária é pronunciada. E a justificativa pelo silêncio, dada por Bolsonaro, não poderia ser pior. Disse ele, “lamento, mas todos nós vamos morrer um dia”. Se existe uma frase capaz de banalizar a dor pela perda de um ente querido é esta.

Ocorre que por trás do manifesto desinteresse pelas milhares de mortes brasileiras e americanas se esconde a verdadeira razão do aparente descaso: motivação política. Em outras palavras, foco na reeleição. Por isso protestos de grande interesse popular não são bem-vindos nem nos EUA e nem no Brasil. Eles perturbam e ameaçam o alcance desse objetivo. Então melhor é impedi-los de acontecer. Reprimindo.

Aliás, se tem alguma coisa que precisa ser bloqueada no Brasil é essa paranoia persecutória do presidente e de seus influenciadores mais próximos. Querem por que querem impor uma realidade fabricada. Todos os brasileiros lúcidos sabem que a tese de que a esquerda está se organizando para impor um regime comunista é obra de ficção ou no mínimo saudosismo do tempo da ditadura.

O que se constata cada vez com mais clareza é uma movimentação espontânea de diversos segmentos da sociedade para impedir que a democracia seja substituída por uma ditadura militar. Ou não é isso que está sendo proposto nos protestos bolsonaristas, que contam inclusive com a presença do presidente da República e de vários ministros militares? Ou seja, se existe um projeto de golpe em gestação ele ocorre no âmbito do próprio governo e não por quem dele não participa.

Então que semântica surreal é essa que estão tentando nos enfiar goela abaixo? O interessante é que se realmente os militares fossem experts em administração pública, já que milhares deles ocupam cargos na gestão Bolsonaro, os resultados dos 17 meses do atual governo deveriam ter sido bem mais expressivos. E o que se observa é justamente o contrário, a ponto de ter gente manifestando saudade de Michel Temer.

Esses jovens que participam dos protestos que desagradam os governistas, é oportuno que se diga, estão defendendo a democracia e a liberdade de expressão, preceitos constitucionais que Bolsonaro jurou cumprir ao tomar posse e que as Forças Armadas tem como baliza para as suas atuações. Além disso, quando o presidente e o seu vice utilizam expressões como “marginais”, “terroristas” e “baderneiros” para rotular os ativistas dos movimentos antifascistas estão desprezando um contingente expressivo de brasileiros que serviram ou servirão como recrutas ao Exército, Marinha e Aeronáutica. Então alto lá capitão e general, mais respeito com a juventude. Desse jeito vocês estarão incentivando que pais, avós, tios e demais familiares se somem ao esforço da rapaziada.

Esse é o problema de ter militares atuando na vida pública, seja integrando governos ou exercendo mandato parlamentar. É da sua natureza dividir as pessoas entre aliados e inimigos. Na guerra pode ser assim, mas em tempos de paz não. Na democracia todos possuem os mesmos diretos e os mesmos deveres. Fugir dessa lógica é praticar o exercício do autoritarismo, onde predomina a lei do mais forte e não a razão. E isto é humanamente intolerável.

E é isso que a voz das ruas estão dizendo. “Democracia! Democracia”. Esse era o grito que ecoava na avenida Paulista. Como isso pode ser coisa de revolucionário? Se houve excessos – e parece que houve, de parte a parte – que os envolvidos fossem retirados da manifestação, mas acabar com o protesto legítimo e democrático foi um exagero injustificável. O pior é que não se vê similitude nos atos pró-governo, seja em Brasília ou em outras cidades.

A grande verdade é que estamos diante de um presidente que sabe das suas fraquezas e morre de medo das consequências que delas resultarão. Aliás, que já começam a acontecer. O pavor que os bolsonaristas tem das manifestações populares reside justamente na desproporção entre o número de apoiadores do presidente, que só diminui, e os que não estão insatisfeitos com sua conduta no cargo e com o desempenho da sua gestão, que só aumenta.

O mais curioso nisso tudo é que é justamente o isolamento pela covid-19, tão combatido pelos governistas, que está obstaculizando a realização de protestos populares de grande porte. Com as coisas do cotidiano voltando a normalidade o clamor popular pelo impeachment de Jair Bolsonaro é algo perfeitamente previsível. Isso explica o seu crescente desespero. E convenhamos, deve ser mesmo difícil para o presidente conviver com todo esse barulho. Já imaginaram ele tentando dormir e uma música indesejável lhe convulsionando a memória com o refrão “vai passar nessa avenida um samba popular…”

(*) Jornalista 

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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