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10 de abril de 2019
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20:00

Estado ou franquia empresarial?

Por
Sul 21
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Estado ou franquia empresarial?
Estado ou franquia empresarial?
Foto: Guilherme Santos/Sul21

Sergio Araujo (*)

Dormia, a nossa pátria-mãe tão distraída
Sem perceber que era subtraída
Em tenebrosas transações…
(Chico Buarque – Vai Passar)

Uma associação inacreditável entre o liberalismo e o autoritarismo está em curso no país. Antes, convenientemente (ou será covardemente?) disfarçados de “homens e mulheres de bem”, os adeptos da idolatria do lucro e os saudosistas dos anos de chumbo embarcaram na nau da extrema-direita que singra (ou será sangra) os mares revoltos da cidadania global. Agindo como piratas do capitalismo, perderam a timidez e já não escondem mais suas faces horrendas e suas atitudes perversas e não disfarçam mais suas intenções antidemocráticas, espalhando injustiças e ódio.

Mas não se iludam os incautos e os distraídos, essa conjunção não foi obra do acaso. Não iniciou em janeiro deste ano. Talvez tenha se empoderado definitivamente no início do ano. Atuando de forma endêmica, tal qual um vírus mortal, os agentes da “nova era” sempre agiram silenciosamente nas entranhas do poder, ocupando importantes espaços nas diversas instâncias institucionais, num conluio desprezível que transformou o interesse público numa marionete do interesse privado. Ou alguém em sã consciência pode acreditar que essa parceria entre agentes públicos e empresários surgiu de forma aleatória?

E que não venham dizer que a escolha dos atuais governantes tem a chancela do voto popular. Povo sem uma educação qualificada, sem emprego, sem moradia, sem saneamento, sem atendimento de saúde e sem segurança age como gado, como bem disse Zé Remalho. Vota por empatia e não por racionalidade. Usa a emoção, na maioria das vezes induzida, e não o intelecto. Seja pela ação direta de falsos homens públicos, ou indireta, pelos meios de comunicação.

E o que são os veículos de comunicação e as redes sociais se não máquinas formadoras de opinião?

Predominantemente nas mãos da iniciativa privada, os meios de comunicação agem como representantes do status quo vigente. Atuam conforme a identificação de interesses comuns. Especialmente os econômicos. Da mesma forma, os administradores das redes sociais, com seus robôs e postagens fakes, não passam de prepostos dos interesses de quem sabe retribuir financeiramente aos seus posicionamentos favoráveis.

Pois é essa indução exacerbada e equivocada, de que o privado faz mais e melhor do que o público, que me estimulou a redigir este artigo. No Rio Grande do Sul, por exemplo, a concessão das rodovias gaúchas mediante cobrança de pedágio e a privatização da CEEE e da CRT, por mais que a imprensa e os defensores do liberalismo econômico retratem como cases de sucesso, são campeões em reclamações do contribuinte junto aos órgãos de defesa do consumidor. Da mesma forma, a extinção de autarquias e fundações promovidas pelo governo Sartori, justificadas como essenciais para a melhoria das contas públicas, não apenas não gerou nenhum resultado positivo como sequer teve suas atividades incorporadas pela iniciativa privada. Óbvio, pois empresário só investe naquilo que dá lucro e não naquilo que prioritariamente gera benefícios à população.

Um exemplo dessa mentalidade egoística é a extinção da Superintendência de Portos e Hidrovias (SPH), órgão considerado nacionalmente como o de maior expertise no gerenciamento de hidrovias (o RS detém a maior malha hidroviária navegável do país). Além disso, cabia a SPH a administração do porto de Porto Alegre. O que fizeram os governos entreguistas? Concederam o cais Mauá à iniciativa privada que, por sua vez, prometeu transformar o espaço num grande centro cultural, de lazer, gastronomia, turismo, negócios e eventos. Passados quase uma década, a única coisa que proliferou no local foi o mato e as rachaduras nos armazéns tombados pelos Patrimônios Histórico Nacional e Municipal.

Enquanto isso, as hidrovias continuam abandonadas, praticamente sem nenhum investimento e, apesar de servir de importante via de acesso ao Polo Petroquímico e de abastecimento de GLP para a região metropolitana, não desperta nenhum interesse da iniciativa privada. Lógico, é um segmento de baixa rentabilidade. O mesmo, porém, não ocorre com o lucrativo superporto de Rio Grande, há décadas ambicionado pelo empresariado e cujos rumores dos bastidores apontam para uma ação objetiva visando sua privatização.

Privatização dos espaços públicos

Pois agora a prefeitura de Porto Alegre resolveu propor o inimaginável: a privatização de praças e parques. Já vinha fazendo isso em iniciativas piloto em alguns locais. O chamado boi de piranha. Primeiro passou a impressão de que com a ajuda privada, vendida como filantropia, o que estava ruim ficou muito melhor. Como se cuidar de uma praça fosse algo de enorme complexidade e de elevado custo para o poder municipal. Fisgada a boa impressão, o passo seguinte foi oferecer ao setor privado o filé das áreas verdes da capital. E o caminho foi o projeto que está prestes a ser votado pela Câmara de Vereadores.

Nele, segundo a imprensa, os “vultosos” investimentos serão ressarcidos mediante cobrança de ingresso. E já tem formador de opinião se antecipando as críticas dizendo que não se trata de limitar o acesso gratuito aos parques e praças, mas o pagamento pela utilização dos empreendimentos que neles serão implantados. Uma espécie de contrapartida pela conservação e melhoria das áreas de uso comum.

Opa, espera aí. Parques e praças são classificados pelos planos diretores como áreas verdes urbanas, espaços com predomínio de vegetação. E querem franquear a construção de estabelecimentos comerciais, de uso restrito, em espaços públicos de circulação gratuita? Shopping centers à céu aberto? Ou será que irão cercar as áreas verdes e cobrar ingresso pela sua utilização? Tudo é possível.

O que fica nas entrelinhas e que o cidadão não percebe é que cada vez mais o poder público, pela ação dos governantes neoliberais, se desfaz da sua função pública. E o já assoberbado contribuinte que arque com mais encargos e despesas. Quer desfilar no carnaval? Arrume patrocínio privado para utilizar a pista de e ventos. Quer circular pela cidade? Arque com as tarifas elevadas do transporte urbano. Quer contar com uma polícia atuante? Espere que os empresários doem viaturas, armas, munições e equipamentos aos governos estadual e municipal. Ou contrate vigilância privada. Deseja ter acesso a uma rede médico-hospitalar de qualidade? Faça planos de saúde. Quer proporcionar ensino qualificado aos seus dependentes? Coloque-os em estabelecimentos particulares.

Assim, pouco a pouco, o Estado vai se tornando, resolutiva e passivamente, inoperante e desnecessário. Ao contrário da iniciativa privada, que se torna cada vez mais imprescindível e abastada. “Maiores empresas do RS têm lucro duplicado em 2018”, diz o título de uma matéria divulgada pela imprensa gaúcha na última segunda-feira. Em contrapartida, na semana passada, as manchetes chamavam a atenção para o crescimento do desemprego e para o fato de Porto Alegre ter uma das cestas básicas mais cara do país.

E para não dizer que esqueci do governo federal, deixei a pior parte para o fim. Privatização e a atual administração do país são sinônimos. Gêmeos univitelinos em pensamento e intenções. E desfrutam do mesmo ódio pelo que é público e completo descaso para com tudo que se identifica com cidadania. Carrascos impiedosos que atuam com agentes funerários de plantão.

Exagero? Pensem então no sofrimento dos trabalhadores, permanente ameaçados pela perda dos seus empregos e da supressão unilateral dos seus direitos e das suas conquistas trabalhistas. Imaginem o desespero e a insegurança dos futuros aposentados, se é que conseguirão se aposentar. Pensem nas postagens debochadas e nas declarações grosseiras daqueles que, por ocuparem cargos da mais elevada hierarquia institucional, deveriam servir de exemplo de bem servir e que, pelo contrário, se comportam como representantes do atraso, da intolerância e da incompetência.

E o mais lamentável é que possuem uma imensa horda de admiradores acéfalos, que caminham sorridentes e entusiasmados rumo ao caos da civilidade. Tal qual zumbis contemporâneos, só irão se dar conta de que tudo não passou de uma grande mentira, uma grande farsa, quando descobrirem que “o presente, a mente, o corpo, é diferente, e que o passado é uma roupa (esfarrapada) que não lhes serve mais”.

Vendam tudo, acabem com o serviço público, seus mercadores de ilusões, mas não esqueçam, jamais conseguirão comprar a consciência de quem sabe que tudo isso vai passar e que o sol vai voltar amanhã. E isso não tem preço.

(*) Jornalista

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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