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10 de maio de 2019
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19:29

O bolãozinho e a comunidade

Por
Sul 21
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O bolãozinho e a comunidade
O bolãozinho e a comunidade
Ginásio Luizão, da Sociedade São Luiz (Reprodução)

 Selvino Heck (*)

Pausa ativa. Estou encostado no balcão da cerveja, como faço lá a maior parte do tempo. Olho ao redor, o grande Ginásio da Sociedade São Luiz de Santa Emília, Venâncio Aires, Rio Grande do Sul, minha terra, minha comunidade. De um lado, uma roda de mulheres jogando seu bolãozinho de mesa mensal. De outro, parte dos homens também jogando bolãozinho de mesa. Em frente, no outro lado, na lateral da quadra de futebol de salão do Ginásio, em três mesas, os jogadores de canastra, atentos a cada carta lançada. À minha frente, perto do balcão, em torno de duas mesas, a roda dos bebedores de cerveja, a turma mais jovem.

Ninguém está com celular na mão. Os mais velhos, a maioria, nem têm celular. Para os mais jovens, a conversa, a convivência e a cerveja são mais atraentes, valem mais a pena num domingo de manhã que começou com chuva, o futebol da tarde cancelado. Além disso, no interior do interior do Rio Grande do Sul, o sinal do celular em geral é fraco, muitas vezes inexistente.

De manhã, houve Assembleia da Sociedade São Luiz, que tem longa história, décadas de bailes e festas comunitárias, tem o Esporte Clube São Luiz e suas vitórias gloriosas, muitos campeonatos ganhos. Na Assembleia da manhã, notícias, informações, decisões. O tema mais importante: o número de sócios, que vem caindo, e os sócios existentes estão envelhecendo. Conforme deliberação da Assembleia anterior, houve aumento de sócios. Mas é preciso continuar o trabalho, diz o presidente da Sociedade, atraindo a juventude.

A Sociedade São Luiz é formada fundamentalmente por agricultoras e agricultores familiares descendentes de alemães, que continuam trabalhando na roça, mesmo estando aposentados. Por todos os lados e em todas as rodas, inclusive entre os mais jovens, ainda rola muita conversa em ‘alemão batata’’, misturada com português. Ou, mais comum em 2019, português misturado com frases e expressões em alemão.

Quando há Assembleia, como no domingo no final de abril, o almoço, uma gostosa galinhada, especialidade da casa (assim como o churrasco), é ‘de grátis’ para todos os sócios em dia com a Sociedade, e a cerveja é vendida a preço de custo. Como não é todos os dias – são duas Assembleias por ano –, momento de aproveitar para comer bem, barato e beber.

Integro-me na roda de cerveja. Rola conversa sobre todos os assuntos possíveis e imagináveis, das questões de família a temas de trabalho, problemas do município, os campeonatos de futebol em andamento, todo mundo falando ao mesmo tempo. As garrafas de cerveja vão surgindo quase automaticamente, um pagando uma, outro pagando outra, quase em rodízio combinado.

Inevitavelmente, em algum momento, surgem a conjuntura e a política na roda. Gozações para cima de mim são recorrentes, tipo: “Mas tu é muito burro, Selvino! Foi ser assessor do Lula e nem aproveitou a oportunidade. Saiu mais pobre que entrou, continua com um carro todo fudido e anda todo mal vestido. Não fosse tão burro, podia ajudar mais nós. E não precisava ser tão pão duro!” Depois das brincadeiras, surgem as preocupações do momento: a corrupção que se instalou no país, a Reforma da Previdência, especialmente para os agricultores familiares, como está a situação do Lula, etc. Preocupação geral: os problemas do êxodo rural, da juventude que não fica mais na roça, os que vão embora de casa à procura de emprego, os que não aparecem e não participam mais, como se aposentar nos próximos anos, o dinheiro minguando nos bolsos de todos, a aposentadoria de salário mínimo que não dá mais conta, e assim por diante.

São relatos, considerações, registros vindo à memória na véspera do Dia das Mães. Nada mais justo e oportuno. Mamãe Lúcia, de 92 anos, ainda moradora da comunidade, e papai Léo, falecido, participaram da construção da Sociedade São Luiz. E deixaram para os nove filhos os valores da participação comunitária, do trabalho em grupo e em comunidade, da convivência harmoniosa. Fazem parte da minha vida e das minhas decisões desde sempre e para todo sempre.

Ainda existem comunidades, e não são poucas, onde a solidariedade, o fazer coletivo, a paz comunitária construída e vivida por todas e todos são, não só predominantes, quanto fundamentais, cultivados e vividos no cotidiano das famílias. Não há aí lugar e condições para a intolerância reinante hoje, a busca de dinheiro fácil, o individualismo exacerbado, a violência armada, valores dominantes nos tempos atuais, no Brasil e no mundo.

Nos meus tempos de guri, a Escola São Luiz e seu único professor eram mantidos pela própria comunidade e famílias. Todo mundo ‘pegava’ junto, e ainda ‘pega’, para resolver problemas da Escola, hoje pública, para manter de pé a Sociedade e o futebol do São Luiz e de outras Sociedades e Clubes da redondeza. Todas e todos se envolvem para manter a solidariedade entre as famílias, não deixar a violência entrar e tomar conta. Todas e todos sabem que, juntos e em comunidade, é mais fácil resolver tudo, criar os filhos, ser feliz, viver e sobreviver.

A Sociedade São Luiz de Santa Emília e seu bolãozinho resistem, assim como a Comunidade São Luiz e o Esporte Clube São Luiz. Felizmente faço parte desta história, embora, pelas coisas da vida, tenha estado longe de seu dia a dia na maior parte dos meus já longos sessenta e oito anos, tempo e anos que, de alguma maneira, tenho buscado recuperar. Assim como faço esforço para estar com mamãe o maior tempo possível, ouvir, em alemão, suas histórias, ajudar a cuidar de sua saúde, e principalmente, no Dia das Mães, desejar-lhe pessoalmente, assim como desejo a todas as mamães, um ‘glückliche Mutters Tag’, feliz Dia das Mães.

(*) Deputado estadual constituinte do Rio Grande do Sul (1987-1990). Em dez de maio de dois mil e dezenove.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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