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25 de janeiro de 2019
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15:01

A questão militar ontem e hoje

Por
Sul 21
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Foto: Agência Brasil

Selvino Heck (*)

“A Constituição engessa o país”, disse o general Hamilton Mourão, vice-presidente da República, hoje presidente em exercício, em longa entrevista ao jornal Valor Econômico (‘Transição. Vice eleito afirmou que Bolsonaro poderá propor emenda constitucional para desvinculações. Governo fará desmanche do Estado, diz Mourão’. Cláudia Safatle, Carla Araújo e Andréa Jubé, Valor Econômico, 28, 29 e 30 de dezembro de 2018, p. A12).

Para tentar entender o que está acontecendo hoje no Brasil, revisito um texto assinado por mim e Hildemar Rech – “A conjuntura, o socialismo democrático, a política de alianças estratégicas e a questão militar”, publicado em tempos de mandato de deputado estadual constituinte, abril/maio de 1988, tempos de Nova República e governo Sarney, em curso a Constituinte, que resultou na assim proclamada Constituição Cidadã.

Diz a análise de então, 1988, em ‘O problema da democratização do Estado e a questão militar’: “No Brasil, o componente militar tem sido um elemento de extrema importância para a garantia da continuidade do autoritarismo político. Trata-se aqui da presença institucionalizada das Forças Armadas no governo brasileiro. A presença militar está tão internalizada no governo que, via veto, ela restringe muitas áreas de renovação social e política. A tutela militar faz parte da própria estrutura social do país.

Em nosso país se desenvolveu uma integração de interesses muito profunda entre o desenvolvimento da burguesia, dos grupos politicamente dominantes e o desenvolvimento das próprias Forças Armadas. Contra o pensamento militar democrático, influenciado pela esquerda, desenvolveu-se, no seio das FFAA, a doutrina da Segurança Nacional desde os anos 50 e 60. Esta doutrina é muito mais que militar, pois ela também é uma doutrina social que impõe uma camisa-de-força ao País. Nesta filosofia político-militar, todas as relações sociais são suspeitas de criminalidade. O conflito social é visto como uma ponta-de-lança do comunismo.

A hierarquia e a disciplina, características da corporação militar, não se aplicam, fora dos quartéis, a sociedades minimamente democráticas, cujas Constituições não contemplam tutelas fardadas sobre o Estado e os poderes da República. As esperanças de democracia chegam a ser escassas, ainda mais quando tantos políticos gostam mesmo é do conforto da tutela militar.

(…)Durante meses os militares fizeram funcionar no Congresso Constituinte um lobby muito bem montado para lhes assegurar a continuidade da tutela que mantêm sobre os poderes da República. No texto constitucional oficial aprovado pelos constituintes, os militares conseguiram manter a tutela sobre a sociedade política. Para os militares, a manutenção da tutela é um dado inarredável do seu acordo com a ‘Nova República’. Alguns generais têm lembrado em conversa de bastidores que houve expresso entendimento neste sentido com o idealizador do novo regime, Tancredo Neves (Exatamente o mesmo aconteceu nos tempos atuais, grifo meu, no golpe de 2016 e nas eleições de 2018, segundo notícias e comentários de bastidores).

Com a Nova República, o regime militar foi formalmente encerrado, mas os militares não saíram de cena. O governo Sarney não só não promoveu a decantada volta aos quartéis, como, ao contrário, trouxe de vez os quartéis para dentro da política. A transição despiu a máscara, na arrogante sinceridade do general Leônidas: ‘Foi isso que combinamos com o Tancredo’. A transição negociada, na verdade, não prescreveu a tutela militar que, sem o desgaste da interferência direta do poder, como se deu no passado, torna-se mais dissimulada, mais eficaz e mais permanente.

(…) A capitalização da Constituinte aos interesses dos militares cristalizou uma realidade: os militares estão acima, ao largo, ou fora da lei que emana do povo. Seu papel é definido por eles próprios e só por eles próprios pode ser julgado. Autonomia militar e papel político autodefinido, eis as duas pontas da tutela. O que, obviamente, inclui o direito intrínseco de dar o golpe de Estado quando melhor lhes aprouver, ou quando as condições históricas o permitirem.

No passado longínquo, os militares não tinham este poder no Brasil. Assim, por exemplo, em 1891 o Exército era parte do serviço público, assim como os garis do Distrito Federal. Seu comandante em chefe estava sujeito à demissão e às leis civis. Também na época, para contrabalançar qualquer ímpeto expansionista das Forças Armadas, a Constituição previa o contrapeso das Polícias estaduais, autônomas e arejadas pelo ideal do federalismo. Hoje a polícia é fundamentalmente militar e está submetida às Forças Armadas.

Os militares hoje estão preparados para intervir no universo político brasileiro mais que nunca. A coesão interna e ideológica que persiste dentro das FFAA as facultou reorganizar a ocupação de um espaço político que, a rigor, nem mesmo sob a ditadura tiveram. O deputado do PT, José Genoíno, corretamente afirmou que no Brasil, sob o novo regime, os militares asseguram a sua condição de ‘principal partido político da burguesia’.

No Brasil, o fim do regime militar não deve ser confundido com o fim da função político-institucional das Forças Armadas. Como afirmou certa vez o General Leônidas, ”a revolução de 64 não se encerrou com Tancredo Neves, mas sim se eterniza, porque chegou a democracia que nós sempre buscamos’. Quer dizer, os militares entendem que, mesmo quando fizeram uma ditadura feroz, estavam buscando a democracia.

O novo texto constitucional que está sendo aprovado não somente restaura a tutela militar da lei e da ordem, mas ainda mantém a anistia proposta nas disposições transitórias exatamente nos limites desejados pela cúpula fardada: sem reintegração aos quadros da ativa, sem direito ao recebimento dos atrasados e com os anistiados subindo até o posto de coronel, ainda que na reserva.

No novo texto constitucional, o Serviço Nacional de Informações (SNI) não ficará dissolvido. As fichas acumuladas durante 20 anos continuarão em processo de atualização (eu, grifo meu, mesmo deputado estadual constituinte gaúcho, fui ‘acompanhado’ pelo menos até o final de 1988/89 pelos serviços de informação, na suposta democracia da Nova República); as divisões de segurança e informações não serão desmanteladas; o grampeamento de telefones não será suspenso; a aviação civil continuará nas mãos da FAB; a Lei de Segurança Nacional e sua ideologia e doutrina continuarão em vigor; as Forças Armadas continuarão mantendo completa liberdade de iniciativa nos assuntos referentes á ‘defesa interna’, inclusive a repressão de greves; Estado Maior das Forças Armadas, a Casa Militar, o Exército, a Marinha e a Aeronáutica não serão extintos como ministérios para serem substituídos por um único Ministério da Defesa sob controle civil (o que, grifo meu, só veio a acontecer de FHC presidente); determinados ramos estratégicos da economia continuarão sob administração ou fiscalização militar, tais como a indústria bélica, a informática, o programa nuclear e a produção de energia.”

Olhando com o olhar de 2019 para a análise feita em 1988, em pleno processo constituinte, vendo a composição política do recém empossado governo federal, e revisitando as declarações das lideranças militares nos anos 1980 e as de hoje, como na entrevista do atual vice-presidente da República, general Hamilton Mourão, entre outras declarações de militares hoje ministros, e diante dos acontecimentos das primeiras semanas de janeiro, compreende-se muito do que aconteceu nos últimos 40 anos, inclusive nos governos Lula e Dilma, e do que está acontecendo nesta quadra da história brasileira, 2019.

São mais que atuais e altamente elucidativas algumas frases da análise de 1988, entre outras que poderiam ser citadas: “Em nosso país se desenvolveu uma integração de interesses muito profunda entre o desenvolvimento da burguesia, dos grupos politicamente dominantes e o desenvolvimento das próprias Forças Armadas”; “Esta doutrina da Segurança Nacional é muito mais que militar, pois ela também é uma doutrina social que impõe uma camisa de força ao país. Nesta filosofia político-militar, todas as relações sociais são suspeitas de criminalização. O conflito social é visto como uma ponta de lança do comunismo”; e a frase profética de José Genoíno: “No Brasil, sob o novo regime, os militares asseguram a sua condição de principal partido político da burguesia.”

Falta muito para se poder dizer que o Brasil é de fato e de direito uma democracia.

(*) Deputado estadual constituinte do Rio Grande do Sul (1987-1990). Em vinte e cinco de janeiro de dois mil e dezenove.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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