Colunas>Selvino Heck
|
9 de novembro de 2018
|
15:34

Sem armas. Livros na mão

Por
Sul 21
[email protected]
Sem armas. Livros na mão
Sem armas. Livros na mão
Foto: Guilherme Santos/Sul21

Selvino Heck (*)

Fui criado numa casa/família onde tinha uma espingarda de dois canos, herança do meu avô alemão que nunca conheci. Papai usava a arma para caçar. Naqueles tempos, anos 1950/1960, eu criança/adolescente nas colônias da Linha Santa Emília, Venâncio Aires, interior do interior do Rio Grande do Sul, tinha onça nos muitos matos existentes então, tamanduás, pássaros e lebres e outros muitos bichos. E que, de vez em quando, davam um bom almoço ou jantar de final de semana para os nove filhos do seu Léo e dona Lúcia. O sustento vinha do que se plantava, dos animais que se criava.   Mais adiante, a arma foi devidamente aposentada.

Nunca peguei a espingarda na mão ou atirei, ainda que eventualmente acompanhasse papai, à distância, na caça de lebres. Papai não queria nem permitia. A espingarda ficava muito bem guardada/escondida no quarto dele, onde a gente nunca entrava, escondida para que nenhum guri de repente se aventurasse a manuseá-la.

Todas as famílias das comunidades de descendência alemã ou italiana tinham armas em casa, herança cultural de seu passado europeu. Mas as espingardas jamais eram ou foram usadas para atirar em pessoas sequer para amedrontar alguém. A arma nunca era carregada na rua ou nos salões ou comércio da comunidade, nem pensar na igreja que todos frequentavam.

Nossa arma de guris era o bodoque, para atirar ou tentar acertar em algum passarinho desprevenido na copa de uma árvore, ou mesmo para pura brincadeira ou torneio de tiro, para ver se conseguíamos acertar alguma coisa à distância. Nunca para machucar alguém, ou para meter medo.  Os valores da comunidade, de tolerância, de respeito ao outro, de boa convivência, de saúde, não permitiam ferimentos em alguém, solução de eventuais divergências com brigas, ou tiros, seja de espingarda, seja via bodoque, ou qualquer tipo de violência.

As ‘armas’ que usávamos eram os livros, com os quais aprendi a conviver desde criança, a maior parte em alemão gótico, que sei ler, como uma enorme Bíblia, romances, que minha avó Gertrudes lia regularmente.

Aprendi a ler aos cinco anos de idade. Tia Leonida, a mais letrada da família, irmã gêmea de papai, sentada no chão do galpão ao lado de casa, sortia fumo e me alfabetizava. Enquanto separava as folhas de tabaco para venda por sua qualificação/qualidade, escrevia letras, sílabas, palavras com carvão preto nas paredes de madeira do galpão. Eu, gurizinho sentado ao lado dela, ia decifrando cada rabisco e aprendendo a ler. Quando, aos seis anos, cheguei seis anos na Escola São Luiz, mantida pela comunidade, sabia ler e escrever.

Comecei, ao poucos, a devorar os livros de casa, lendo o jornal semanal que chegava regularmente, e conhecendo a vida e o mundo. E começando a escrever. Minha vida é mesmo a palavra. Ler, falar, escrever, poetar. Assim deveria ser hoje, 2018, século XXI, quando parece que voltamos a tempos em que a solução (nunca foi em Santa Emília na metade do século passado) é ter uma arma na mão para resolver os conflitos, para defender-se, para escapar da insegurança geral, às vezes até mesmo para defender-se da polícia.

Não quero, não pretendo não vou render-me a este mundo de medo, desconfiança geral, ódio, intolerância, violência, e medo, até de escolas, alunos, professores, que se alastra.

Não é este o caminho, ou a solução, pregada até por candidato a presidente eleito. Por isso levei, na votação do segundo turno, na mão e no coração, livros e a carteira de trabalho. Queria levar a Pedagogia do Oprimido de Paulo Freire, que não achei na minha estante abarrotada. Busquei então outro livro inspirador, Jesus Cristo Libertador, de Leonardo Boff. Mas podia ter levado Cartas da Prisão ou Batismo de Sangue, de Frei Betto, ou ainda As Veias Abertas da América Latina, do hermano uruguaio Eduardo Galeano, ou ainda Cem Anos de Solidão de Gabriel Garcia Márquez, ou o Tempo e o Vento de Érico Veríssimo. E tantos e tantos outros.

Levei ainda o primeiro EM MÃOS, uma antologia de seis então jovens poetas, publicado em 1976, por uma Cooperativa, o Grupo Vereda, com prefácio de Tarso Genro, que escreveu profeticamente: “Nestes tempos de desespero, que envolvem curtos salários e insegurança (…), sou partidário em arte, como são, por sua vez, os fascistas e os reacionários, estes defendendo a arte alienada e propagandística dos fetiches das classes dominantes. Sou partidário porque entendo a arte também como um instrumento de aproximação entre homens que querem mudar a realidade em que vivem, instrumento de sugestão, síntese e mensagem. Há uma unidade inegável nestes trabalhos de poesia do EM MÃOS: todos são profundamente humanos, todos são verdadeiramente claros, todos são dirigidos ao homem normal e não aos iluminados.”

Escreveu José Eduardo Degrazia, um dos seis poetas de 1976, e organizador do EM MÃOS III, publicado pela L@PM em 2012: “Mais de trinta anos se passaram desde a primeira antologia. Entretanto, o grupo, que surgiu em plena ditadura militar, continua apregoando a poesia como liberdade: de ideias, de sentimentos e da palavra.”

Tarso Genro, no prefácio do EM MÃOS I, escolheu versos de cada um dos seis poetas. Escreveu então, em elogio além da conta: “Selvino Heck, cuja poesia escorre num belo tom nerudiano: ‘Trabalhador da palavra sou. Canto o povo, sangue nos dedos, boca suja, miséria no meio’. “

O poema completo, de 1976, diz, como se fosse hoje: “TRABALHADOR DA PALAVRA. Trabalhador da palavra sou./ Canto o povo,/ sangue nos dedos,/boca suja,/ miséria no meio./ Sofro cada verso/como se fosse/ um pedaço da carne/sendo retirado e comido,/ tragado e ingerido/ por feras e gaviões./ Sinto-me preso,/ preso e imerso/ na palavra,/ no grito do povo/ que jorra das curvas,/ e risca a aterra,/ e corta o solo,  e sangra o mundo./ Poeta sou/ do operário,/ do sofredor,/ do oprimido./ Choro por dentro,/ estilhaço o corpo,/ estou morrendo/ aos poucos./ Trabalhador da palavra sou. E do espanto.”

Estamos em 2018, quarenta e dois anos depois. Parece que os versos foram escritos hoje para hoje, não em tempos de ditadura militar. Mais que nunca, hoje e sempre, nada de armas, e sim, carteira de trabalho numa mão, e livros, muitos livros, palavras, versos e poesia na outra.

(*) Deputado estadual constituinte do Rio Grande do Sul (1987-1990)

§§§§

Os artigos assinados não refletem necessariamente a opinião do jornal, sendo de inteira responsabilidade de seus autores.


Leia também
Compartilhe:  
Assine o sul21
Democracia, diversidade e direitos: invista na produção de reportagens especiais, fotos, vídeos e podcast.
Assine agora