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14 de abril de 2018
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10:00

Bagunçando a Casa Grande, e uma flor na mão

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Sul 21
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Bagunçando a Casa Grande, e uma flor na mão
Bagunçando a Casa Grande, e uma flor na mão
Lula após ato em São Bernardo do Campo, poucas horas antes de se entregar à PF | Foto: Ricardo Stuckert/Divulgação

Selvino Heck (*)

Val entra na piscina pela primeira vez na vida. Balança os pés dentro d’água, sente o barulho – o ‘chap, chap’ gostoso da primeira vez -, pega o celular e telefona para Jéssica. “Tudo bem, filha? Sabe onde estou?”, pergunta com um olhar misto de surpresa, deslumbramento, alegria e liberdade, com sua coragem. “Estou dentro da piscina. Estava pensando aqui comigo? Posso te visitar?” Dias antes, Val  tinha advertido a filha por ter entrado na piscina, mesmo empurrada pelo filho, Fabinho, da patroa, dona Bárbara. E ela repreendeu a filha por ter feito algo grave contra as regras vigentes na casa, ela, Jéssica, mera hóspede.

Val é empregada doméstica há décadas numa casa de classe média alta em São Paulo. Jéssica é sua filha, que veio de Recife a São Paulo fazer vestibular na FAU, famosa e disputada Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da capital paulista.

Jéssica subverte a rotina da Casa Grande. Toma café da manhã com os patrões, tira quitutes da geladeira sem perguntar, dorme no quarto de visitas, conversa com todo mundo da casa, fuma um baseado na beira da piscina com Fabinho, o filho dos patrões, fala de igual para igual qualquer assunto. E principal: Jéssica passa no vestibular para Arquitetura com notas melhores que o filho da patroa. Jéssica explica que um professor de história abriu-lhe os olhos sobre o mundo, a realidade, a vida. É assediada pelo patrão José Carlos. Obviamente não dura muito tempo na mesma casa em que a mãe serve, com todos os louvores de empregada competente, cumpridora dos deveres e das regras, há exatos treze anos. Val acaba pedindo demissão e vai morar com a filha, vai cuidar do neto e morar com os seus.

As cenas acima descritas são do filme “Que horas ela volta?”, dirigido por Anna Muylaert, filme aclamado no mundo inteiro, e imperdível vê-lo/revê-lo, como já o fiz dezenas de vezes, para quem quer entender o que se passa no Brasil de hoje e dos últimos anos.

Os pobres do Brasil começaram a subverter as regras da Casa Grande: jovens pretos e pobres entraram na Universidade; trabalhadoras/es tiveram aumento real do salário mínimo; trabalhadoras/es passaram a andar de avião, transformando o aeroporto em rodoviária; pobres e trabalhadoras/es começaram a ser doutoras/es, cientistas, médicas/os, advogadas/os melhores e mais qualificados que os da classe média; o Brasil empinou o nariz e começou a falar grosso com os EUA e a manter laços com a América Latina, Caribe e África; a democracia começou a ser praticada e vivida no cotidiano, nas ruas, nos bares, nas escolas, com Orçamento Participativo, com políticas sociais com participação popular; o Brasil saiu do Mapa da Fome da ONU; os mais pobres dos pobres começaram a ‘tomar café da manhã, almoçar e jantar’; a desigualdade econômica e social diminuiu pela ‘primeira vez na história’.

Lula ajudou a subverter a Casa Grande. Simples assim. Toda vez que a Senzala coloca em xeque as regras, ou as leis, vigentes, o resultado é: demissão, exílio, prisão, fim da democracia, assassinato. Casos mais recentes e notórios, entre outros tantos: o golpe de 2016 contra a presidenta legítima Dilma Roussef, e o assassinato da vereadora negra, militante dos direitos humanos, defensora dos pobres, das mães de jovens pretas/os e de policiais assassinados, Marielle Franco, e Anderson Gomes.

Lula saiu do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo, sua segunda casa, muitas vezes sua primeira, nos braços do povo, que o protegia, com uma flor na mão. Bagunçando, afrontando a Casa Grande, mais uma vez. Um ladrão nos ombros do povo, como nas greves de 1979/80. Um condenado com uma flor na mão, aclamado pela multidão que cantava a mais que atual “Apesar de você”, de Chico Buarque, de 1970,  dois anos  depois do AI-5  de 1968, ditadura a pleno:

“Hoje você é quem manda, falou, tá falado, não tem discussão, não./ A minha gente hoje anda falando de lado e olhando pro chão, viu?/ Você que inventou  esse estado, e inventou de inventar toda a escuridão. Você que inventou o pecado, esqueceu de inventar o perdão./ Apesar de você, amanhã há de ser outro dia./ Eu pergunto a você, onde vai se esconder da enorme euforia? Como vai proibir, quando o galo insistir em cantar, água nova brotando e a gente se amando sem parar?/ Quando chegar o momento, esse meu sofrimento, vou cobrar com juros, juro, todo esse  amor reprimido, esse grito contido, esse samba no escuro./ Você que inventou a tristeza, ora, tenha a fineza de desinventar./ Você vai pagar, e é dobrado, cada lágrima rolada nesse meu penar./ Apesar de você, amanhã há se ser outro dia./ Inda pago pra ver o jardim florescer qual você não queria. Você vai se amargar, vendo o dia raiar sem pedir licença. E eu vou morrer de rir, que esse dia há de vir antes do que você pensa./ Apesar de você, amanhã há de ser outro dia./Você vai ter que ver a manhã renascer e esbanjar poesia./ Como vai se explicar, vendo o céu clarear de repente, impunemente? Como vai abafar nosso coro a cantar na sua frente?/ Apesar de você, amanhã há de ser outro dia. Você vai se dar mal, etc. e tal, la, la, la, la. APESAR DE VOCÊ!”

 

(*) Deputado estadual constituinte do Rio Grande do Sul (1987-1990). Em treze de abril de dois mil e dezoito.


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