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10 de dezembro de 2017
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10:07

Mística da militância

Por
Sul 21
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Mística da militância
Mística da militância
“É tempo de estar em todas as frentes, de doar pedaços de vida para que todos juntos tenham mais vida”. (Foto: Guilherme Santos/Sul21)

Selvino Heck (*)

De volta aos velhos e bons tempos. Saímos no início da noite da Escola Paulo Freire, Caruaru, Pernambuco, onde aconteceu o Encontro Macro Nordeste da RECID (Rede de Educação Cidadã), para a Rodoviária: pegar à meia noite o ônibus rumo a Salvador, BA, para seminário de preparação do FSM/2018 (Fórum Social Mundial), de 13 a 17 de março. Eu e Rose, educadora da RECID/BA, sacolejamos 14 horas passando por dezenas de cidades e rodoviárias, conversando sobre o Brasil, a educação popular, a força do Nordeste. Os abraços coletivos, a noite cultural cheia de dança e alegria, as reflexões, as cirandas, os hinos e os poemas, a noite estrelada de Caruaru, as/os educadoras/es da RECID nos deram força e coragem. E Rose pegou outro tanto de estrada, mais 14 horas, até chegar na sua cidade.

Feliz ou infelizmente, esses tempos de militância voltaram: viajar de ônibus em vez do conforto do avião, fazer encontros e seminários em lugares simples, com dormitórios e banheiros coletivos, tirar dinheiro do bolso para fazer as atividades, pôr o pé no barro e na estrada. Prefiro olhar pelo lado positivo.

Lembrei de Plenária Nacional da RECID em agosto de 2007, há exatos dez anos: 300 educadoras e educadores reunidos na Chácara do CIMI em Luziânia, Goiás. Eram tempos de construção do PPP, Projeto Político Pedagógico da RECID: Características de um Projeto Popular de Nação e Princípios Orientadores da Rede. Eram tempos de vacas gordas, onde havia recursos para trazer centenas de lideranças sociais e militantes de todo Brasil de avião, garantir a presença de todas e todos com despesas pagas. Foi um debate intenso, às vezes acalorado: experiências diferentes, práticas sociais de todas as regiões do Brasil presentes, Paulo Freire na veia, na vida e no cotidiano das comunidades, dos movimentos sociais, dos processos de conscientização.

Insisti que um dos Princípios estivesse ligado à vida militante de milhares de lutadoras, lutadores, sonhadoras, sonhadores espalhados pelo Brasil, e imaginando que, mais cedo ou mais tarde, a direita conservadora e a elite antidemocrática brasileira não aguentariam ter os pobres, os lascados e as/os trabalhadoras/es como protagonistas, com cada vez mais os direitos assegurados, sendo donos de seu nariz, exigindo distribuição de renda e reformas estruturais na sociedade brasileira. O décimo segundo Princípio do Projeto Político Pedagógico da Rede de Educação Cidadã tem a seguinte redação: Vivência de uma mística da militância e da mudança.

A história não está feita, somos nós que a fazemos. Com valores como a solidariedade, o fazer coletivo, trabalho de base e formação, e unidade na base popular. Tempos de crise são tempos de formar lideranças de têmpera, dizia Lenin. Estamos nestes tempos em terras brasileiras, latino-americanas e caribenhas (vide a tentativa de golpe em Honduras e a resistência do povo), tal como aconteceu em tempos de ditadura nos anos 1960, 1970, 1980, e em tempos neoliberais, anos 1990. Grandes lideranças surgiram nestes períodos, muita desobediência civil aconteceu para reconstruir a democracia, garantir os direitos do povo. Mobilizações de massa, lutas de todos os tipos, greves como as do ABC em tempos de governos militares, ocupações urbanas e rurais, acampamentos na beira das estradas, Marchas e Romarias. A bandeira estava nos ombros, os cantos e hinos de Zé Vicente, Zé Pinto e outros tantos cantadores populares saíam das gargantas com força, a certeza de se estar no caminho certo, de estar abraçado a companheiras e companheiros, de olhar no olho e encarar/enfrentar sem medo qualquer adversário ou inimigo, de lutar por uma causa comum.

O Seminário de Associações de Moradores da Lomba do Pinheiro, conjunto de vilas populares na periferia de Porto Alegre e Viamão, acontecido há poucas semanas, fez esta reflexão: como unir a organização dos trabalhadores através dos sindicatos com as lutas e reivindicações das Associações de Bairro, reunir grupos de base na Economia Solidária, construir as Comunidades de Base, unir as famílias em projetos comuns. Celebrou-se a mística do encontro, da troca de gentilezas entre vizinhos, do celebrar coletivo das vitórias, do engajar-se comunitariamente nas necessidades uns dos outros, nas rezas comuns, na partilha.

Dias depois do Seminário, houve um trancamento de rua na entrada da Lomba do Pinheiro, por causa da falta de água nas comunidades e de um sistema de baldeação que está sendo implantado pelo governo municipal conservador de Porto Alegre, levando os usuários do transporte coletivo da Lomba a usar dois ônibus para chegar ao centro da cidade, atrasando as viagens, que já são longas, e levando a uma série de transtornos. Povo na rua trancando o trânsito, não demorou a ser chamada a Tropa de Choque da Brigada Militar para dispersar os manifestantes. Resultado: houve repressão aos manifestantes, que protestavam por legítimos direitos, levaram spray de pimenta na cara. Mas o protesto aconteceu. A reflexão levou à ação. A mística animou a militância na coragem de lutar. As últimas notícias dão conta que parou de faltar água na Lomba do Pinheiro. Vitória, com determinação, protesto, desobediência civil, vitória com mística.

É tempo de estar em todas as frentes. Como é tempo de celebrar o pouco ou o muito que se avançou. É tempo de doar pedaços de vida para que todos juntos tenham mais vida. É tempo de fazer um bom caldo, misturando mística e luta, militância e companheirismo, abraços e força para encarar os ‘perigos da vida’. Pé no barro, ninguém derrota quem tem sonhos, quem tem coragem, quem celebra suas conquistas, quem não deixa a irmã e o irmão na estrada. Eles, os do outro lado, os do lado de lá, não têm nem nunca terão esta coragem e estes sonhos. Pensam apenas no dinheiro, no acúmulo de bens, em como podem dar rasteira no concorrente, ‘sonham’ com as Ilhas Cayman e em como evitar que sejam rastreados seus bilhões, que não pagam impostos ou são roubados. Do lado de cá, o sonho de um outro mundo possível acalenta o cotidiano difícil, mas cheio de energia. A energia militante não se esgota, seja nos momentos mais fáceis, de conquistas e vitórias, seja nos momentos duros, difíceis, heróicos, como estes que estamos vivendo e atravessando. Do lado de cá há vida, há fé, há construção coletiva, há solidariedade.

Isso, a mística, a paixão, a entrega, ninguém rouba, ninguém tira. Não adianta spray de pimenta na cara, nem repressão, nem mesmo prisões, o exílio, até mesmo a tortura e a morte. A mística, o sonho, a utopia são mais fortes que tudo. E sustentam o futuro e a esperança paulofreireanamente.

(*) Deputado estadual constituinte do Rio Grande do Sul (1987-1990)


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