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3 de dezembro de 2017
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10:37

Conquistar a América

Por
Sul 21
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“Como fazer com a política, ou, para ser menos exigente, com a comunidade, o que gremistas e colorados fazem com seu time do coração?” (Foto: Luciano Lanes / PMPA)

Selvino Heck (*)

Estava eu em casa durante a semana, tentando escrever meu artigo semanal. Dois textos/artigos pré-prontos, tema escolhido, título perfeito, – um dos quais é ‘Mística da Militância’-, mas a escrita não fluía. Fui preparar o chimarrão matinal, para ver se as ideias andavam melhor, se os dedos corriam soltos pelo teclado, e…. nada.

Aí, por algum motivo, surgiram na mente os nossos sonhos da América, os sonhos de muitas e muitos, de idos tempos. Anos 1970, 1980, alguns, mais antigos, anos 1950, 1960, subíamos as cordilheiras da Sierra Maestra, da Bolívia, da Nicarágua. Sonhávamos que tudo isso que acontecia lá pudesse acontecer um dia no Brasil. ‘As Veias abertas da América Latina’, título do livro de Eduardo Galeano, uma segunda Bíblia para as sonhadoras e os sonhadores de então, seriam fechadas para o capital explorador, faríamos ecoar as revoluções, cubana e nicaraguense, por todos os países, o povo latino-americano finalmente seria dono de seu nariz, teria dignidade, haveria liberdade, justiça e igualdade em todo continente.

Lembrei do Che, lembrei de Sandino, lembrei de Fidel, lembrei de Allende, lembrei de Marighella, e tantos revolucionários e revolucionárias que admirávamos/admiramos, de quem queríamos/queremos seguir os passos, a luta de libertação por e com seu povo.

Lembrei do Papa Francisco, esse jesuíta argentino que gosta muito de futebol, e que, por artes da vida e por sabedoria, escolheu o nome Francisco, que fala a favor dos pobres, dos leprosos, dos desempregados, que prega a ecologia integral como salvação para esse mundo a perigo.

Lembrei dos movimentos sociais e populares que incendiaram, no bom sentido, os países e o continente latino-americano, os piqueteiros argentinos, os índios bolivianos, os sem-terras brasileiros, os metalúrgicos do ABC, as mulheres quebradeiras de coco, os jovens ocupantes de escolas, as lutas, as greves, as ocupações de terra e moradia, as mobilizações de massa, as Constituições Cidadãs e os Estados plurinacionais.

Lembrei dos governos populares e progressistas que nas últimas décadas finalmente aconteceram na América Latina e no Brasil. Lembrei das políticas públicas, dos pobres finalmente vistos e atendidos por governos, do Orçamento Participativo exemplo para o mundo, do Fórum Social Mundial em terras brasileiras, gaúchas, porto-alegrenses, dizendo, anunciando ‘um outro mundo possível’.

Lembrei de tudo isso e muito mais quando a torcida gremista, multidões nas ruas, nos estádios, nos bares, em todos os lugares, até com elogios colorados, foi cantando a plenos pulmões ‘Soy loco por tri America’. (Não sou gremista fanático, até porque minha família é toda dividida entre colorados e gremistas – somos nove irmãos -. Sou mesmo São Luiz de Santa Emília, Venâncio Aires, interior do interior do Rio Grande do Sul, onde joguei, de quem tenho, e visto, quase todas as camisetas, inclusive a de veteranos.)

São lembranças, devaneios de uma semana em que o Rio Grande do Sul esteve dividido ao meio, azuis e vermelhos com sonhos diferentes, ansiosos, torcendo ou ‘secando’. Aí fiquei pensando: como, nesses tempos de democracia ameaçada, direitos dos trabalhadores pisoteados todos os dias, em que está difícil arrastar a juventude e a população para as ruas e, no entanto e ao mesmo tempo, como milhões se mobilizam por causa de um jogo de futebol ou de um campeonato? Dezenas de milhares pagaram ingresso para ir assistir em telão o jogo da final da Libertadores na Arena do Grêmio, ou viajaram para Lanus, Argentina. Milhares vão pagar fortunas para acompanhar seu time nos Emirados Árabes nas próximas semanas. O Grêmio vai chegar em breve a 100 mil sócios, que pagam suas mensalidades religiosamente em dia. O Internacional também.

A Porto Alegre desta semana parecia a Porto Alegre do Fórum Social Mundial nos seus melhores tempos: gente na rua aos milhares, celebrando, festejando, dando cor e vida à cidade. E o meu partido – e movimentos sociais, ONGs – tem enorme dificuldade de fazer com que seus filiados paguem mensalidade, façam militância de graça, participem do debate e das lutas, num momento dramático que o Brasil atravessa!

O que explica tudo isso?

Como fazer com a política, ou, para ser menos exigente, com a comunidade, com o sindicato, a Associação de Moradores, a pastoral social, o que gremistas e colorados fazem com seu time do coração? E flamenguistas, palmeirenses, santistas, pontepretanos, cruzeirenses, atleticanos, sãopaulinos, botafoguenses, corintianos, chapecoenses, tantos e tantos mais.

Como fazer para apaixonar-se por uma causa, doar a vida, enfrentar perigos e viagens, dedicar seu tempo, cultivar nos filhos a mesma paixão?

E volta o sonho de conquistar a América. Estamos em tempos mais do que difíceis. É preciso abraçar causas, é preciso defender os mais fracos, é preciso cuidar do futuro, é preciso criar e construir esperança. Como o Grêmio se (re)construiu nos seus milhões de torcedoras/torcedores, depois de anos de secura, ouvindo as/os torcedoras/es rivais cantando diariamente nos seus ouvidos que ‘eram campeões de tudo’. Não o são mais: sequer conseguiram ser campeões da Série B do Brasileirão.

Isto é, os tempos podem mudar. Os ventos que ontem sopravam para o Norte podem virar e soprar, de repente, para o Sul.

(*) Deputado estadual constituinte do Rio Grand do Sul (1987-1990).


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