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9 de julho de 2017
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13:03

Mesa, copo, prato, sal, talher

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Mesa, copo, prato, sal, talher
Mesa, copo, prato, sal, talher
O sentido político do Programa Fome Zero, era ser realizado com pessoas, movimentos e entidades que trabalham com educação popular. (Divulgação)

Selvino Heck

Faz pouco tempo. Menos de 15 anos, início do século XXI. Eram tempos de esperança.

“As iniciais do então Ministério Extraordinário de Segurança Alimentar formavam a palavra MESA. Sobre esta MESA, a Mobilização Social do Fome Zero, coordenada por Oded Grajew e por mim (Frei Betto), colocou o COPO (Conselho Operativo do Fone Zero), o PRATO (Programa de Ação Todos pela Fome Zero), o SAL (Agentes de Segurança Alimentar) e o TALHER. TALHER é um instrumento de alimentação. Para o Programa, não só alimentação física, mas também mental e espiritual. O Fome Zero não quer saciar apenas a fome de pão, mas também a de beleza: promover a educação cidadã dos beneficiados. A equipe conhecida por TALHER prepara monitores que capacitam quem participa de Comitês Gestores, COPOS ou atua como SAL. E ajuda a multiplicar muitos TALHERES Brasil afora”. (Frei Betto, A fome como questão política, In ‘Fome Zero, Textos fundamentais’, Ed. Garamond, 2004, pp. 26-27).

Ivo Poletto, da primeira equipe de educadores e educadoras do TALHER, escreveu: “Educação cidadã é um amplo processo de descoberta do sentido ético e do sentido político do Programa Fome Zero, a ser realizado com pessoas, movimentos e entidades que trabalham com educação popular. Tem como missão reforçar a mobilização cidadã dos excluídos e excluídas. Essa mobilização visa à conquista das transformações estruturais – reforma agrária, geração de emprego com salário adequado, apoio à geração de trabalhos e serviços que gerem renda, reforma urbana, etc. -, necessárias para que sejam geradas oportunidades para que todas as pessoas e famílias garantam sua segurança alimentar e nutricional com autonomia” (Educação cidadã multiplicadora: O que é?, op. cit).

O presidente Lula disse, quando do lançamento do Programa Fome Zero, em 2003: “Se eu conseguir que todos os brasileiros e todas as brasileiras possam tomar café da manhã, almoçar e jantar, já terei cumprido a missão da minha vida.”

Fui reler, em tempos de aposentadoria militante e tempos bicudos, meus guardados. Achei uma publicação de 2011, ‘PÉ DENTRO, PÉ FORA NA CIRANDA DO PODER POPULAR’ (RECID, Instituto Paulo Freire, Secretaria de Direitos Humanos), contando a história da Rede de Educação Cidadã (RECID) de 2003 a 2010, durante os dois governos Lula Presidente, e onde estão os parágrafos acima transcritos de Frei Betto e Ivo Poletto. A primeira parte da publicação – ‘RECID (2003-2010) entre a Realidade e a Utopia’-, abre com uma citação de Paulo Freire: “Todo amanhã implica, necessariamente, o sonho e utopia.”

A partir da equipe de 7 educadores populares do TALHER, surgiu a Rede de Educação Cidadã (RECID). Hoje, mesmo em tempos de governo golpista, resiste bravamente, na base da educação popular militante, e continua no trabalho de ‘saciar a sede de beleza’, de dignidade, de cidadania, de direitos, de democracia.

2017, os tempos são outros, mais duros e difíceis. O desemprego e, portanto, a fome e a miséria, ronda de novo as casas e mesas dos pobres e trabalhadores, jovens e mulheres A desigualdade social volta a aumentar, depois de uma queda nas primeiras décadas do século, queda relativamente tímida, mas histórica para os padrões brasileiros de maior desigualdade do mundo. E não estamos apenas vivendo as consequências do neoliberalismo dos governos de Fernando Henrique Cardoso, o que, por si só e tudo que representa, já seria trágico. O quadro atual é bem mais grave. A democracia está ameaçada no Brasil e na América Latina, com golpes reiterados à soberania popular. As poucas conquistas e avanços sociais e de direitos dos anos 2000 estão sendo dizimados. O grande capital financeiro e a mídia reocupam seu espaço histórico de dominação econômica e ideológica.

Leonardo Boff escreveu em 2004: “Vivemos tempos de grande barbárie, porque é extremamente parca a solidariedade entre os humanos. Um bilhão e quatrocentos milhões de pessoas vivem com menos de um dólar por aí. Dois terços destes são constituídos pela humanidade futura: crianças e jovens com menos de quinze anos, condenados a consumir duzentas menos vezes energia e matérias-primas do que seus irmãos e irmãs norte-americanos. Mas quem pensa neles?” (O ethos que se solidariza, op. cit).

Escrevi, em 2004: “Um projeto de desenvolvimento democrático-popular combina a democratização do Estado e da sociedade com um modelo de desenvolvimento econômico e social a partir da maioria da população, do mercado interno, do setor produtivo, da soberania nacional, da participação popular, com o sentido ético-político de distribuir renda, riqueza e poder. O Programa Fome Zero (PFZ) insere-se neste contexto e perspectiva. Faz-se assim uma verdadeira revolução democrática” (Sentido ético-político e transformação social, op. cit).

Bons tempos, aqueles! Mas parece que MESAS, COPOS, PRATOS, O SAL, TALHERES e RECIDs (Redes de Educação Cidadã) continuam mais que nunca urgentes e necessários hoje, 2017. Nada mais atual o que Eliane Martins, da primeira equipe de educadoras/es do TALHER, escreveu em 2004, para aquele momento histórico, e continua escrevendo para os tempos que vivemos hoje: “O que está posto como tarefa histórica para o povo brasileiro é um profundo processo de mobilização e organização. Mais que nunca se faz necessário conhecer, participar, ouvir e falar. Não é tempo para silêncio, para esperas em arquibancadas distantes da vida. É hora de entrar no jogo, entrar na partida que está acontecendo aqui no chão” (Primeiros Passos da Fundação do Brasil, op.cit.).

A luta e o trabalho de base de ‘saciar a sede de beleza’ continuam.

(*) Deputado estadual constituinte do Rio Grande do Sul (1987-1990)

Em sete de julho de dois mil e dezessete


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