Selvino Heck
Faz pouco tempo. Menos de 15 anos, início do século XXI. Eram tempos de esperança.
“As iniciais do então Ministério Extraordinário de Segurança Alimentar formavam a palavra MESA. Sobre esta MESA, a Mobilização Social do Fome Zero, coordenada por Oded Grajew e por mim (Frei Betto), colocou o COPO (Conselho Operativo do Fone Zero), o PRATO (Programa de Ação Todos pela Fome Zero), o SAL (Agentes de Segurança Alimentar) e o TALHER. TALHER é um instrumento de alimentação. Para o Programa, não só alimentação física, mas também mental e espiritual. O Fome Zero não quer saciar apenas a fome de pão, mas também a de beleza: promover a educação cidadã dos beneficiados. A equipe conhecida por TALHER prepara monitores que capacitam quem participa de Comitês Gestores, COPOS ou atua como SAL. E ajuda a multiplicar muitos TALHERES Brasil afora”. (Frei Betto, A fome como questão política, In ‘Fome Zero, Textos fundamentais’, Ed. Garamond, 2004, pp. 26-27).
Ivo Poletto, da primeira equipe de educadores e educadoras do TALHER, escreveu: “Educação cidadã é um amplo processo de descoberta do sentido ético e do sentido político do Programa Fome Zero, a ser realizado com pessoas, movimentos e entidades que trabalham com educação popular. Tem como missão reforçar a mobilização cidadã dos excluídos e excluídas. Essa mobilização visa à conquista das transformações estruturais – reforma agrária, geração de emprego com salário adequado, apoio à geração de trabalhos e serviços que gerem renda, reforma urbana, etc. -, necessárias para que sejam geradas oportunidades para que todas as pessoas e famílias garantam sua segurança alimentar e nutricional com autonomia” (Educação cidadã multiplicadora: O que é?, op. cit).
O presidente Lula disse, quando do lançamento do Programa Fome Zero, em 2003: “Se eu conseguir que todos os brasileiros e todas as brasileiras possam tomar café da manhã, almoçar e jantar, já terei cumprido a missão da minha vida.”
Fui reler, em tempos de aposentadoria militante e tempos bicudos, meus guardados. Achei uma publicação de 2011, ‘PÉ DENTRO, PÉ FORA NA CIRANDA DO PODER POPULAR’ (RECID, Instituto Paulo Freire, Secretaria de Direitos Humanos), contando a história da Rede de Educação Cidadã (RECID) de 2003 a 2010, durante os dois governos Lula Presidente, e onde estão os parágrafos acima transcritos de Frei Betto e Ivo Poletto. A primeira parte da publicação – ‘RECID (2003-2010) entre a Realidade e a Utopia’-, abre com uma citação de Paulo Freire: “Todo amanhã implica, necessariamente, o sonho e utopia.”
A partir da equipe de 7 educadores populares do TALHER, surgiu a Rede de Educação Cidadã (RECID). Hoje, mesmo em tempos de governo golpista, resiste bravamente, na base da educação popular militante, e continua no trabalho de ‘saciar a sede de beleza’, de dignidade, de cidadania, de direitos, de democracia.
2017, os tempos são outros, mais duros e difíceis. O desemprego e, portanto, a fome e a miséria, ronda de novo as casas e mesas dos pobres e trabalhadores, jovens e mulheres A desigualdade social volta a aumentar, depois de uma queda nas primeiras décadas do século, queda relativamente tímida, mas histórica para os padrões brasileiros de maior desigualdade do mundo. E não estamos apenas vivendo as consequências do neoliberalismo dos governos de Fernando Henrique Cardoso, o que, por si só e tudo que representa, já seria trágico. O quadro atual é bem mais grave. A democracia está ameaçada no Brasil e na América Latina, com golpes reiterados à soberania popular. As poucas conquistas e avanços sociais e de direitos dos anos 2000 estão sendo dizimados. O grande capital financeiro e a mídia reocupam seu espaço histórico de dominação econômica e ideológica.
Leonardo Boff escreveu em 2004: “Vivemos tempos de grande barbárie, porque é extremamente parca a solidariedade entre os humanos. Um bilhão e quatrocentos milhões de pessoas vivem com menos de um dólar por aí. Dois terços destes são constituídos pela humanidade futura: crianças e jovens com menos de quinze anos, condenados a consumir duzentas menos vezes energia e matérias-primas do que seus irmãos e irmãs norte-americanos. Mas quem pensa neles?” (O ethos que se solidariza, op. cit).
Escrevi, em 2004: “Um projeto de desenvolvimento democrático-popular combina a democratização do Estado e da sociedade com um modelo de desenvolvimento econômico e social a partir da maioria da população, do mercado interno, do setor produtivo, da soberania nacional, da participação popular, com o sentido ético-político de distribuir renda, riqueza e poder. O Programa Fome Zero (PFZ) insere-se neste contexto e perspectiva. Faz-se assim uma verdadeira revolução democrática” (Sentido ético-político e transformação social, op. cit).
Bons tempos, aqueles! Mas parece que MESAS, COPOS, PRATOS, O SAL, TALHERES e RECIDs (Redes de Educação Cidadã) continuam mais que nunca urgentes e necessários hoje, 2017. Nada mais atual o que Eliane Martins, da primeira equipe de educadoras/es do TALHER, escreveu em 2004, para aquele momento histórico, e continua escrevendo para os tempos que vivemos hoje: “O que está posto como tarefa histórica para o povo brasileiro é um profundo processo de mobilização e organização. Mais que nunca se faz necessário conhecer, participar, ouvir e falar. Não é tempo para silêncio, para esperas em arquibancadas distantes da vida. É hora de entrar no jogo, entrar na partida que está acontecendo aqui no chão” (Primeiros Passos da Fundação do Brasil, op.cit.).
A luta e o trabalho de base de ‘saciar a sede de beleza’ continuam.
(*) Deputado estadual constituinte do Rio Grande do Sul (1987-1990)
Em sete de julho de dois mil e dezessete