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24 de janeiro de 2018
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15:45

Combater a desigualdade exige um novo patamar de ousadia política

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Sul 21
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Combater a desigualdade exige um novo patamar de ousadia política
Combater a desigualdade exige um novo patamar de ousadia política
“A constatação do estudo da OXFAM é brutal: 82% de toda a riqueza gerada no mundo em 2017 ficou nas mãos do 1% mais rico. (Foto: CC / ONU)

Samir Oliveira (*)

Não é nenhuma novidade que vivemos em um mundo desigual, onde muitos ganham pouco e poucos ganham muito. A própria população brasileira tem plena noção disso, como revela uma pesquisa recente sobre o tema. (https://www.oxfam.org.br/noticias/pesquisa-oxfam-brasildatafolha-revela-a-percepcao-sobre-desigualdades-no-brasil)

Uma coisa é ter a percepção de que a desigualdade existe e é forte. Outra coisa é observar a dimensão assustadora de seus dados. Que o sistema capitalista siga imune diante deste abismo é algo que só pode ser explicado pela força que possui uma ideologia quando ela é dominante. Tão dominante que não precisa sequer dizer seu nome para ser defendida todos os dias na mídia corporativa. Tão dominante que conta – e muito – com o esforço dos próprios dominados para defendê-la.

O mais recente relatório da OXFAM foi publicado nesta semana, justo no momento em que os titãs da economia mundial se reúnem em Davos para retroalimentar a sobrevivência do sistema, num culto peculiar ao capital que encontra na China governada pelo Partido Comunista uma defensora fiel do livre mercado e que já encontrou no Brasil governado por Lula e Dilma um sócio de carteirinha. O país segue um entusiasta desta reunião de cúpula do capitalismo, mas agora sob a liderança opaca de Michel Temer.

Pois bem, o relatório da OXFAM – uma ONG internacional dedicada ao estudo e combate das desigualdades no mundo – ouviu mais de 120 mil pessoas em 10 países, nos cinco continentes. Seu nome não poderia ser mais apropriado: “Recompensar o trabalho, não a riqueza”. (https://www.oxfam.org/en/research/reward-work-not-wealth) A constatação do estudo é brutal: 82% de toda a riqueza gerada no mundo em 2017 ficou nas mãos do 1% mais rico. Metade da população mundial não viu nem a poeira destes recursos.

Não foi por acaso que 2017 assistiu, também, a um boom de bilionários no mundo inteiro. A cada dois dias, um novo bilionário surgiu. Ao todo, já são 2.043 integrantes desta categoria exclusiva de cidadãos. A cada dez, nove são homens. O capitalismo brasileiro também teve seu momento de expansão, apesar desta e de todas as crises, os muito ricos sempre saem ganhando. Em 2017 o Brasil viu mais 12 de seus cidadãos entrarem para o clube dos bilionários. Já são 43 no país, dos quais apenas cinco possuem um patrimônio equivalente à metade mais pobre da população. (https://brasil.elpais.com/brasil/2017/09/27/album/1506500637_319817.html)

Quantos destes fizeram suas fortunas na esfera produtiva da economia? Nenhum. Ou são banqueiros, ou acionistas de fundos de investimento, que controlam uma série de gigantes, mas cujos negócios estão mesmo concentrados no mundo virtual das finanças e rendimentos. Só mesmo os capitalistas sem capital acreditam que é possível fazer fortuna e enriquecer trabalhando e vivendo como assalariado.

Os dados da OXFAM demonstram que um terço da riqueza dos bilionários não vem do trabalho, mas de heranças. É curioso ver liberais e defensores do capitalismo silenciando em relação à taxação insignificante sobre heranças no Brasil, pois não existe algo menos meritocrático e menos oriundo do esforço individual do que uma herança. No Brasil o imposto sobre herança varia de acordo com cada estado, mas não passa dos 8%, em alguns casos chegando a ridículos 4%. É um verdadeiro escândalo, inclusive para os padrões e valores do capitalismo. Nos Estados Unidos e na Inglaterra, o imposto sobre heranças chega a 40%. Na Alemanha, a taxa é de 50%. No Japão a alíquota cobrada é de 55% e na França chega a 60%.

Diante deste cenário de desigualdades abissais revelado no relatório da OXFAM, é urgente que se fale em taxação das grandes fortunas. Algo previsto na Constituição brasileira, mas jamais regulamentado pela legislação. Uma medida que não tem absolutamente nada de revolucionária, tanto é que foi inserida na Constituição por iniciativa de Fernando Henrique Cardoso. Trata-se de justiça tributária.

Sempre que se fala neste tema, os profetas do apocalipse apressam-se em dizer que o país irá perder com a evasão de divisas. Os milionários que quiserem levar seus recursos ao exterior de forma legal muito provavelmente terão que se submeter a países com uma legislação mais rigorosa que a nossa em relação a grandes riquezas. Os que estiverem dispostos a aderir à ilegalidade não têm porque esperar que uma medida como a taxação das fortunas entre em vigor para isso. O estudo recente da OXFAM também revela que os ricaços escondem pelo menos US$ 7,6 trilhões em paraísos fiscais. Não é a aprovação de um imposto sobre fortunas que irá aprofundar um fenômeno que já existe.

É urgente que se fale também em taxação dos lucros distribuídos a acionistas sobre a forma de dividendos. Quase todos os países que integram a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) adotam este tipo de tributação. O Brasil, não. A Receita Federal estima que os lucros sobre dividendos cheguem a R$ 300 bilhões por ano no país, sem que nenhum centavo de imposto seja cobrado sobre esta quantia. (https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2015/09/14/imposto-sobre-lucros-e-dividendos-geraria-r-43-bi-ao-ano-diz-estudo)

Os dados assustadores apresentados no relatório da OXFAM colocam na ordem do dia a necessidade de se endurecer o combate contra a desigualdade. Diversos economistas respeitados, como Laura Carvalho, apontam que não é mais possível estreitar o fosso entre pobres e ricos apenas com medidas sociais – como o Bolsa Família, que é importante e deve ser ampliado, mas é insuficiente. (https://lucianagenro.com.br/2017/09/laura-carvalho-brasil-nao-redistribuiu-renda-do-topo-para-a-base-da-piramide/) É preciso ir à raiz do problema, fazendo com que os muito ricos contribuam mais e aliviando a carga tributária sobre o consumo e o salário, que atinge principalmente a classe média e as camadas mais empobrecidas da sociedade.

Nenhum programa de transformações para o país que reivindique minimamente o campo progressista de esquerda deve prescindir deste horizonte de combate à desigualdade através não apenas da distribuição de renda aos mais pobres, mas também da contribuição efetiva dos muito ricos. Este é apenas o primeiro passo para que possamos avançar na construção de um país mais justo e igualitário. Mas, para isso, é preciso ir muito além do que já foi feito no passado. Não dá mais para melhorar as condições de vida da base da pirâmide sem atingir os interesses de quem está no topo. Combater a desigualdade exige um novo patamar de ousadia política.

(*) Samir Oliveira é jornalista e militante da Setorial LGBT do PSOL/RS.


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