Opinião
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4 de janeiro de 2021
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11:58

A perpetuação do racismo implícito que ofende sem ofender

Vereadores do PSOL, PT e PCdoB, de Porto Alegre. (Reprodução/Instagram)
Vereadores do PSOL, PT e PCdoB, de Porto Alegre. (Reprodução/Instagram)

Ronald Augusto (*)

O verso “povo que não tem virtude acaba por ser escravo” serve à maravilha às formas ambíguas das práticas racistas, pois ao contrário do racismo às claras ou explícito, esse verso ofende sem ofender. Se é verdade que povos escravizados não são necessariamente destituídos de virtude ou bravura (e podemos concordar nesse ponto), então mais indefensável se apresenta o significado da passagem do hino gaúcho. A condição de escravizado, ou de um povo sujeitado à força, é complexa e não se pode afirmar que essa condição indica um grupo sem valor, sem capacidade de reação.

Recentemente assisti a uma entrevista do pensador Silvio Almeida onde a certa altura um dos interlocutores (um jornalista negro) comentava que de acordo com sua lembrança os pais infelizmente nunca lhe falaram com franqueza a respeito do racismo, o assunto parecia ser negado ou empurrado para debaixo do tapete. O jornalista entendeu que essa situação acabou retardando seu devir de negro consciente. Silvio Almeida fez uma abordagem muito interessante a respeito do depoimento. Aqui vai um resumo: qualquer negro que está vivo hoje, que alcançou uma formação superior e conquistou alguma estima social etc, deve considerar com muita atenção e respeito as estratégias e os custos de sobrevivência dos nossos antepassados, dos nossos pais, o que eles precisaram enfrentar para se manter vivos e produtivos a ponto de servirem de suporte para as nossas realizações e lutas no presente. Essa evocação à entrevista de Silvio Almeida ainda serve para contraditar o sentido do verso “povo que não tem virtude acaba por ser escravo”.

Por outro lado, é preciso considerar as circunstâncias em que o hino foi composto. O que cantam os versos e a colaboração do contexto para a estabilização de alguns dos seus significados. Em primeiro lugar, o hino dos farrapos e, de resto, qualquer hino, cumpre uma função ufanista, exortativa, isto é, visa a elevar o moral dos seguidores em vista de um objetivo. Acontece que quem carrega a bandeira da revolução ou da luta anti-imperial é a elite do tempo, os estancieiros. O hino idealiza uma revolta cheia de honra e bravura que não tem nada de popular, aliás, o episódio dos Porongos, a traição aos negros que emprestaram sua coragem e esperança (último recurso em vista da liberdade) a uma revolução que não era a sua, confirma o caráter elitista de toda essa história infame. O verso “povo que não tem virtude acaba por ser escravo” informa o essencial a respeito de tal elite, ou seja, o desprezo por aqueles que circunstancialmente são (seus) subalternos. O hino quer excitar a bravura dessa elite branca defendendo mais ou menos o seguinte: vocês são homens ou não? Ou vocês são honrados e virtuosos ou vocês são escravos. Quem não se comprometesse com a luta ou com a revolução se pareceria com a gente escrava.

O hino se referia também ao contexto imediato, se não lançasse mão desse jogo erístico-retórico (convencer tendo ou não razão), seu poder de mobilização dos iguais talvez se perdera. Num contexto histórico em que a escravidão negra perdura até 1888, soa demasiadamente fleumático encarecer um sentido atemporal e abstrato ao verso farrapo – segundo esse ponto de vista o termo “escravo” não faria menção apenas ao negro, faria alusão a simbologias menos lastreadas no documental. Entretanto, o receptor ideal do hino, a elite dos estancieiros brancos, decodifica a mensagem em função de tal contexto. Sou um homem ou um escravo preto? Acho difícil aceitar que por detrás da palavra “escravo” o receptor ideal identificasse um sujeito branco ou algo de cunho mais conceitual. Em nossos dias a leitura ou a interpretação inercial do verso parece ser a mesma. A eficiência do racismo implícito é inegável.

Em segundo lugar, a perpetuação do hino, a naturalidade com que ele é cantado sem que nada se diga a respeito do verso “povo que não tem virtude acaba por ser escravo”, já que, como dissemos antes, é possível um povo ser bravo e valoroso mesmo tendo experimentado um revés desse tipo (as estratégias de sobrevivência…), essa perpetuação do preconceito e do racismo que ofendem sem ofender, reforça o imaginário elitista (espécie de ar viciado que compartilhamos, uns mais outros menos) de que pobres e pretos estão na condição em que estão porque não se mexem, porque não “fazem acontecer”. O verso “povo que não tem virtude acaba por ser escravo” é produto da cultura do privilégio branco, portanto é elitista e racista. Feito qualquer máxima, seja poética, seja moral, oriunda do pensamento da brancocracia, a ideia embutida no verso parece ser auto-evidente e necessária e de validade universal. Só que não.

(*) Ronald Augusto é poeta, letrista e ensaísta. Formado em Filosofia pela UFRGS. Autor de, entre outros, Confissões Aplicadas (2004), Cair de Costas (2012), Decupagens Assim (2012), Empresto do Visitante (2013), Nem raro nem claro (2015) À Ipásia que o espera (2016), O leitor desobediente (2020) e Tornaviagem (2020). Dá expediente no blog www.poesia-pau.blogspot.com  e escreve quinzenalmente no Sul21.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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