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27 de março de 2020
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10:01

Alguns escritores negros gaúchos de agora-agora [2]

Por
Sul 21
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Alguns escritores negros gaúchos de agora-agora [2]
Alguns escritores negros gaúchos de agora-agora [2]
Reprodução

Ronald Augusto (*)

 Esta é a segunda e última parte de uma breve amostragem que iniciamos semanas atrás em nossa coluna com o intuito de apresentar ao leitor interessado a produção de alguns escritores e escritoras negros nascidos ou em atuação no Rio Grande do Sul.

Como argumentamos na primeira parte do presente trabalho, os escritores que escolhemos despertam nosso interesse justamente porque apontam para experimentos discursivos que se afiguram mais relevantes tendo em vista, por assim dizer, a perturbação dos acervos à disposição, seja o acervo da autoria negra, seja o acervo considerado canônico, isto é, a tradição literária da branquitude. Não obstante assumirmos nossas escolhas, deixando de lado, obviamente, outros nomes (por enquanto), vale citar e recomendar a leitura dos poemas e textos de, por exemplo, Fernanda Bastos, Marlon Pires Ramos, Lilian Rocha, Marcelo Martins Silva, Taiasmin Ohnmacht, Duan Kissonde e Luiz Mauricio, poetas e escritores atuando e interagindo criticamente tanto com as forças convencionais do sistema literário, quanto com os seus movimentos disruptivos. Seus interesses são amplos e envolvem, por exemplo, um proveitoso diálogo com as performances poéticas surgidas nos slams, a divulgação de escritoras e escritores da África contemporânea e de outras diásporas e, por fim, o investimento intelectual e econômico na criação de editoras voltadas para escritores negros.

Seguimos, então, abordando a produção de João Batista Rodrigues.

 João Batista Rodrigues

Poeta, professor e marinheiro. Publicou Raça Povo e Poesia (1986). Poemas esparsos publicados em jornais e revistas a partir de 1991. Foi integrante do grupo Borá (idealizado por Jorge Fróes) dedicado ao estudo e à leitura pública de poesia.

O poeta João Batista Rodrigues se compromete com uma poesia que se situe o mais rente possível ao real. O mais das vezes sua poesia anda emparelhada à prosa, por isso o estilo direto e meio esturricado de Batista Rodrigues. Entretanto há doses de lirismo nessa poesia, mas não da mesma qualidade daquele “lirismo funcionário público” de que fala Bandeira; não. O tom lírico encontrado na poesia de João Batista Rodrigues é em preto e branco, seu texto é feito de contrastes duros e puros. Não há disposição para o inefável. A travessia amarga por esses poemas contentes de serem não poéticos – felizmente a contragosto dessa ou daquela recepção mais afetada pelo refinamento cínico –, induz o leitor a se sentir lucidamente imerso e de olhos acesos em seu próprio tempo.

Despertar 

É noite.

A escuridão e o silêncio

Alimentam o nosso sono.

E eles

os vigias infectos

patrulham e reprimem qualquer ruído

para não acordarmos.

Como são humanos!

Como são gentis!

Mas

como não estamos mortos

acordamos aos poucos meio que sonolentos

abrimos e metemos a cara na janela

para contemplarmos os primeiros sinais

da luz do dia.

Eliane Marques

Nasceu em Sant’Ana do Livramento e, atualmente, vive em Porto Alegre. Coordenadora da Escola de Poesia e editora da revista Ovo da ema. É Auditora Pública Externa do Tribunal de Contas do Estado. Publicou com outros autores Arado de Palavras (2008), depois, individualmente, Relicário (2009). Traduziu O Trágico na Psicanálise (2012) de Marcela Villavella. Organizou o livro No meio da meia-lua, primeiros versos (2013), do coletivo Africanamente Escola de Capoeira Angola. Em 2015 publicou e se alguém o pano, obra que no ano seguinte ganhou o Prêmio Açorianos na categoria Poema.

Os poemas de Eliane Marques são reveladores de uma personalidade criativa que não pretende ficar presa à subalternidade. Há um indisfarsável desejo de desbordar moldes e modelos. Começamos por essa afirmação pelo fato de Eliane se comportar como uma poeta que, ao mesmo tempo em que se deixa apreender como negra, não perde de vista que esse dado não é substancial para a fruição de sua obra, contudo isso não significa que a condição de mulher e escritora negra seja irrelevante, significa apenas que é secundária no que diz respeito às determinações inerentes ao discurso poético. Entretanto, a recusa à subalternidade, referida linhas acima, assinalável na poesia de Eliane Marques, é a materialização estética – uma das muitas estratégias, pode-se dizer – daquilo que o poeta Arnaldo Xavier chamou de “manual de sobrevivência do negro no Brasil”. O salto criativo por sobre a fenomenologia da resignação tendo como pano de fundo o preconceito naturalizado.

Seus poemas indicam uma poeta interessada na fatura de apostas ambiciosas. Em seus poemas há entre outras coisas: variedade de ritmos, palavras-montagem, étimos de extração de poéticas pan-africanas, coragem de usar uma dicção antinaturalista. Além do mais, a linguagem Eliane de Marques faz um movimento contrário à brevidade enquanto padrão médio; ela investe no aproveitamento da música da prosa, nesse entendimento de que o ritmo se conquista pela reiteração de elementos materiais da linguagem. E, por fim, a poeta possui algo que consideramos fundamental em qualquer artista: Eliane dissimula uma raiva contida, bem aplicada, isto é, um tipo de disposição textual capaz de conferir à forma um enviesamento mais cortante, impiedoso: o estilo da revanche.

 o descasque da quinaria dos cântaros

até que o tric tric

a negra nega fulô

como se já não bastasse

do alabama para roubar nossa pele

ê eta molambos apossados

a negra moura a negra fulô ao prelo

mais que o protocolo dos casacos o baque dos talheres

heeiiiaaa os cosongos à sopa

banquete feito colheradas de terra

judiaria essa negrinha lhe mediram boas as três braças

por que nervo

quer dizer metades de lua com a guarda-baixa

não se trata de a raiz – cascas as medalhas

a era do sôngoro cujo son ecoou na falta

há muito se abasta

com o refugo das línguas (com molho)

com o metiê dos dois pés na taça

ê eta a nega ê eta a nega fulana

termo de pregação dos cabelos a prêmio

pré-molares esquecidos do braseiro

heeiiiaaa

em qualquer saco (de novo)

o pan pan pan dos martelos [1]

 Jeferson Tenório

Nasceu no Rio de Janeiro, em 1977. Radicado em Porto Alegre, é mestre em Letras pela UFRGS. Professor do ensino médio. Em 2009 foi premiado no concurso Paulo Leminski com o conto “Cavalos não choram” e no concurso Palco Habitasul com o conto “A beleza e a tristeza”, já adaptado para o teatro em 2007 e 2008. Um dos mentores e organizadores do Sarau das 6. O beijo na parede é seu primeiro romance.

Através de uma apresentação muito sucinta, não ficaremos afastados da verdade dizendo que O beijo na parede é um relato sensível de um menino de 11 anos empenhado na consideração de suas experiências com o abandono e a morte. A prosa de Jeferson Tenório não é áspera, mas também não é frouxa. O romancista consegue escapar à armadilha do biográfico, no sentido em que, mesmo operando com seus biografemas, ele não se mostra obediente a uma estrita fidelidade relativamente ao vivido. Até onde é possível, Jeferson Tenório segue a lição de T. S. Eliot segundo a qual escrever não é um perder-se na emoção, mas um escapar da emoção; não é a expressão da personalidade, mas uma fuga da personalidade, entretanto, Eliot adverte logo em seguida que só aqueles que têm personalidade e emoção sabem o que significa querer escapar dessas coisas. E quanto a isso O beijo na parede dá conta com sobras.

 Não vou encher vocês falando de todos os lugares onde morei. Sei que estão interessados em saber outras coisas – os adultos sempre se interessam por coisas esquisitas. Mas acho que vale a pena dizer que a gente morava em Copacabana, na Ladeira dos Tabajaras. E também que estudava na escola Cícero Pena, na Av. Atlântica. Na terceira série, depois que já havia superado “ba”, aprendi a matar aula para dar uns mergulhos na praia. Confesso que nunca achei nada demais no mar. No entanto sempre gostei dos mergulhos e de sujar o corpo todo de areia para tirar na água. Aqui em Porto Alegre é que ouço as pessoas dizendo que o mar é isso e aquilo. Mas eu sinceramente não acho. E se é por questão de água ainda prefiro a chuva. Se bem que quando chovia na Ladeira dos Tabajaras era um deus nos acuda. Nossa casa não tinha ameaça de cair morro abaixo, mas os vizinhos da parte mais alta vinham buscar abrigo na nossa sala. Sem contar os alagamentos no pé da ladeira, que deixavam todo mundo ilhado. E esse foi um dos motivos que fez a gente se mudar para a Lapa. Eu disse que foi um dos motivos porque, além dos alagamentos, havia também os tiroteios por causa das brigas dos traficantes. E, como eu já disse, minha mãe queria que eu tivesse um futuro. Então fomos para a Lapa ter um futuro.[2]

Sopapo poético – coletivo de escritores e artistas negros

 O Sarau Sopapo Poético – Ponto Negro da Poesia é um coletivo de criadores negros que celebra mensalmente a literatura negra através dos recitais de poesia, do canto, da dança e do debate de ideias. O projeto faculta, tanto à comunidade negra, quanto ao público interessado em geral, o convívio com uma algaravia de vozes de poetas negros – uns jovens e outros já mais experimentados. As atividades do Sarau Sopapo Poético resultaram em uma antologia de poemas intitulada Pretessência. Esse acontecimento por si só já representa um desvio do modelo literário vigente na pequena capital gaúcha. Ou seja, não é comum depararmos escritores negros se aquilombando ao redor do couro do tambor-símbolo para dizer à viva voz que a literatura não é coisa só de branco, não.

O livro Pretessência [3] reúne um conjunto de textos de poetas negros e negras que guardam entre si grandes diferenças. Mas nessa constatação não vai embutida nenhuma espécie de problema. Entretanto, é inegável a existência de uma questão de fundo que é comum a esses escritores; e ela assume uma amplitude de aspectos, ou seja, essa questão de fundo, sempre transfigurada esteticamente, pode ser resumida numa reação crítica, numa recusa frontal ao preconceito racial e aos desrespeitos que lhe são correlatos, sejam eles velados ou não, e que são experimentados por eles (por nós), escritores/escritoras negros/negras cotidianamente.

De outra parte, isso significa que, com relação ao modo de abordagem dessa invariante temática, vamos observar diferenças substanciais nos poemas abrigados em Pretessência, uns são mais alusivos, outros mais diretos. Lemos autores cuja preocupação tem mais a ver com não ferir a autonomia da função poética, e autores mais interessados em não perder a proximidade com o real; às vezes vamos fruir textos mais experimentais e, por outras, encontramos textos mais convencionais com relação aos modelos literários, ainda que a temática seja contundente. Como exemplos dessa variedade de formas e vozes que a obra nos dá a ver, destacamos os seguintes autores: Lilian Rocha, Pâmela Amaro, Leandro Machado e Duan Kissonde.

Cada novo livro cuja autoria é negra serve, entre outras coisas, para preencher mais uma lacuna na narrativa de construção e de luta por reconhecimento dessa literatura. A antologia Pretessência encontrará os seus leitores e interlocutores, bem como seus críticos e opositores. Ainda que não apostemos em uma essência negra – e nossa objeção à obra se resume a esse tópico –, mas, antes, em uma condição negra em movimento, em construção, acreditamos que esse lance poético levado a efeito pelo coletivo do Sarau Sopapo poético se apresenta à nossa análise como mais um gesto significativo para a afirmação de uma episteme negro-poética in progress e aberta aos nossos variados desejos e interesses.

(*) Ronald Augusto é poeta e ensaísta. Formado em Filosofia pela UFRGS. É autor de, entre outros, Homem ao Rubro (1983), Puya (1987), Kânhamo (1987), Vá de Valha (1992), Confissões Aplicadas (2004), No Assoalho Duro (2007), Cair de Costas (2012), Oliveira Silveira: poesia reunida (2012), Decupagens Assim (2012), Empresto do Visitante (2013) e À Ipásia que o espera (2016). Dá expediente no blog www.poesia-pau.blogspot.com e é colunista do portal de notícias Sul21: http://www.sul21.com.br/editoria/colunas/ronald-augusto/

[1] MARQUES, Eliane. e se alguém o pano. Porto Alegre: Après Coup – Escola de Poesia, 2015. p. 21.

[2]TENÓRIO, Jeferson. O beijo na parede. Porto Alegre: Sulina, 2013. p. 9.

[3] ROCHA, Lilian Rose Marques da [et al]. Sopapo Poético: Pretessência. Porto Alegre: Libretos, 2016. 224p.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.

 


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