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7 de fevereiro de 2020
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10:38

Transfiguração do lugar comum, tópicos

Por
Sul 21
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Transfiguração do lugar comum, tópicos
Transfiguração do lugar comum, tópicos
Arquivo pessoal

Ronald Augusto

I.
A concepção de que a arte opera uma “transfiguração do lugar-comum” é atraente. Tomemos, por exemplo, as caixas de sabão em pó de Warhol que produzem um jogo de engano. À primeira vista elas parecem ter a mesma densidade insignificante das caixas de sabão em pó do mundo mercantil (no sentido em que seu “significado”, muito restrito ou determinado, não ultrapassa a utilidade a que se destinam). Mais de perto, as caixas de Warhol se revelam como objetos do mundo da arte e não meros objetos do mundo do consumo. Essa transfiguração leva o observador/fruidor a interagir com essas caixas de sabão de um modo completamente diferente. Ainda que elas evoquem, com grande ambiguidade, as caixas de sabão do mundo cotidiano, Warhol faz com que suas caixas relacionem seus significados ao mundo da arte. Isto é, por detrás das caixas de sabão reais há um mundo, e por detrás ou no interior das caixas de Warhol há outro mundo. Não estou supondo que esses mundos sejam incomunicáveis.

II.
O fervor de que o cinema, à sua maneira, faria filosofia – de acordo com a perspectiva de alguns pensadores –, poderia suportar uma espécie de operação do tipo transfiguradora da tradição (lugar-comum) filosófica? Assim como eu não posso exigir da banalidade de uma caixa de sabão o mesmo que eu exijo das transfigurações de Warhol, tenho a impressão de que não posso esperar de uma filosofia do cinema o mesmo que eu espero e desejo da filosofia enquanto tradição de tratados especulativos. Segundo o adágio eu não posso colher peras ao olmo. Isso não tem nada a ver com uma ideia retranqueira segundo a qual essa filosofia do cinema seria menos rigorosa ou menor em relação à Filosofia (com a convencional maiúscula). Tudo bem que o cinema possa ser também mais um terreno onde o pensamento filosófico deite algumas raízes. Entretanto, a possibilidade de que o mundo do cinema (esse mundo dentro do mundo da arte) seja capaz de inventar o seu filosofar, me parece de consequências mais ricas para o pensamento e a fruição estética.

III.
Em relação ao tópico de que a tradução talvez pudesse ser interpretada como um tipo de “transfiguração do lugar-comum”, no sentido em que uma tradução (as Brillo Box, por exemplo) não precisa manter uma similaridade estreita com o original (as caixas de sabão em pó do mundo mercantil, por exemplo), uma vez que nem mesmo a tradução que se pretende fiel consegue alcançar seu intento (pois ela é a fixação de um campo de sentidos e de formas em detrimento de outros), enfim, em relação a esse tópico, não vejo como dar crédito à noção de que uma intraduzibilidade está implicada no que chamamos original.

Isto parece um elogio comprometido com o texto de partida: a ideia de que nesse texto, e não na versão, estaria entranhado o sentido cabal. Acontece que um texto literário não se reduz ao “gênio de sua língua materna” – ou coisa que o valha – onde residiria esse significado: essa espécie de rendição ao pathos etimológico. Um texto criativo é língua (idioma) e linguagem (algo mais artificial e mais contente de suas convenções). É por isso que em muitos casos um texto literário parece ter sido escrito em uma língua estranha àquela que escritor e leitor compartilham de fato. A tradução de textos literários ou poéticos pode acentuar essa tensão.

(*) Ronald Augusto é poeta, letrista e crítico de poesia. Formado em Filosofia pela UFRGS. Autor de, entre outros, Confissões Aplicadas (2004), Cair de Costas (2012), Decupagens Assim (2012), Empresto do Visitante (2013), Nem raro nem claro (2015) e À Ipásia que o espera (2016). Dá expediente no blog www.poesia-pau.blogspot.com  e escreve quinzenalmente no http://www.sul21.com.br/jornal/

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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