Ronald Augusto (*)
1.
um não pede mais à vida nem à morte
se o poder entrante lhe doa em honra
algum obscuro cargo de confiança
gabinete onde possa tretas e trocas
outro assoma fácil a rico homem se
consegue ajuntar em seu próprio silo
todo grão que os campos produziram
o agouro dos pássaros sobre o trigo
o que prefere abrir sulcos no chão
a franquear-se ao mar mapeando costas
desconhecidas onde se diz haver
tesouros que lotariam vinte frotas
há quem entenda torpe gastar uma parte
do dia deitado sob verde árvore
ou mansamente junto ao sagrado córrego
muitos preferem a luz que as armas fazem
e de quebra o som asqueroso das sirenes
que põe todas as mães em porcos de ódio
bem mais avessas à guerra que a sereias
(olvido sem música ouvido morto)
o caçador pernoitará sob céu frio
repousando de sua jovem esposa
se seus farejadores rastrearem
um cervo ou se emas de vento em popa
a mim a hera (prêmio devido ao
empenho de algumas cabeças a prêmio)
ata-me à meia-dúzia de superiores
poetas e prosadores que navego
quando a floresta e o sonho do florentino
alongam-me da usura e de muito murro
se machado não me quita a ironia
e ungaretti lança-me seu azurro
e se tu leitor não te aborreces comigo
porque me contento de errar entre eles
chegarei aos astros (traças do meu júbilo)
por via de negro onde poucos se inscrevem
2.
que tropos de sacanagem o poeta
secreta à poesia em seu antro
enquanto vai afogando dedos rogos
impertinentes em rasgos ângulos
enquanto verte vinho novo com velho
cântaro etrusco à falta de outro?
não quer turbá-la com matérias de capa
nem com a poeira de rebanhos gordos
tampouco com ouro ou marfim africano
(entoa-lhe as confissões do africano)
que outros podem o jardim ao soberano
com a foice aqueles a quem a fortuna
não quis foder e que o rico mercador
estimado pelos deuses agite em taças
de ouro os vinhos que logrou além-
fronteira a preço nenhum por boa graça
três ou quatro vezes por ano recorre
os céus do atlântico impunemente
a mim me alimentam raízes de bardana
quiabos que babam baba transparente
e saborosa verdes chicórias denteadas
assim espero aproveitar com ardil e sempre
os dons e os danos que ao redor de mim
brotam com normalidade intransigente
e que eu não caia corpo morto em velhice
prestativa (que a meio mundo agrada)
engordando columbas em praças de putas
e que minha cítara não quede calada
3.
saber o que seja está vedado
não sei que fim me darão os deuses
sequer o que se passará contigo
visível cláudio daqui a meses
números babilônicos falham
melhor é suportar o devir
aceitar de jove chuva e sol
e muitos invernos sem codorniz
toma juízo e o teu vinho
filtra e apura bebendo doses
modestas de modo que a esperança
não afrouxe larga nem transborde
melhor editá-la em breve tempo
(enquanto falamos ele evapora
invejoso) trama pois mesuras
ao momento deixa o mais sem demora
[1] Poema do livro Confissões Aplicadas, 2004.
(*) Ronald Augusto é poeta, letrista e crítico de poesia. Formado em Filosofia pela UFRGS. Autor de, entre outros, Confissões Aplicadas (2004), Cair de Costas (2012), Decupagens Assim (2012), Empresto do Visitante (2013), Nem raro nem claro (2015) e À Ipásia que o espera (2016). Dá expediente no blog www.poesia-pau.blogspot.com e escreve quinzenalmente no http://www.sul21.com.br/jornal/
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