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29 de março de 2019
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10:45

Três filmes para rever e reler

Por
Sul 21
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“Vislumbrei nos closes dos rostos da gente russa de Odessa, os rostos dos operários da mina de carvão que John Ford fotografa em Howgreen was my valley (1942). (Reprodução)

Ronald Augusto (*)

Lady in the lake (1947), direção de Robert Montgomery

A ideia de que o cinema pode nos levar a uma experiência total dos sentidos, talvez esteja embutida na realização desse filme. A pretensão ou a intenção de que a “câmera subjetiva” nos permitiria experimentar o ponto de vista do personagem que conduz a narrativa, tal e qual ele o experimenta no interior do jogo cinematográfico, é apenas uma pretensão. É mais um exercício de estilo, eficiente, mas ainda um exercício.

Enquanto assistia ao filme acabei prestando atenção no modo como o diretor resolveu os movimentos da câmera na tentativa de mimetizar o ponto de vista do detetive. O mundo visto pelo personagem é extremamente lento: há longos olhares de outros personagens para o protagonista, os movimentos da câmera são estudados e antinaturais, há uma coreografia da câmera que se dá em espetáculo. Na verdade não vemos as coisas que o personagem vê, “vemos” o que o coreógrafo-diretor nos incita a ver. A câmera parece disposta a nos ensinar o tempo todo como esse filme deve ser “visto” ou lido, o que devemos ver no mundo desse filme. Ou apenas vemos o que supomos que o personagem está vendo ou deveria ver.

Alien (1979), direção de Ridley Scott

Apenas algumas correspondências e relações.  Vejamos: (1) a aparência da nave Nostromo é sombria e monstruosa em suas gigantescas dimensões; a nave é também um alien, um corpo entranho introduzido em outro planeta para subtrair seus minérios, isto é, retirar algo que constitui a vida do planeta; a empresa de Nostromo é colonial, assim como o intento do oitavo passageiro é fazer dos corpos humanos colônias, territórios ocupados para a perpetuação de sua espécie; (2) o primeiro passageiro a despertar (acordar para a vida) do sono de meses será o primeiro a ser vitimado pelo alienígena; (4) o filme é um pesadelo persecutório; Nostromo é um labirinto em que seus tripulantes são imolados um após o outro por uma fera; (5) o homem-robô (um não humano) é o único que vê a beleza da perfeita imoralidade/amoralidade da criatura não humana; (6) os homens são mortos pela criatura sempre atravessados pelo tronco, são atingidos no peito ou pelas costas; já uma das mulheres é morta pela cauda do alien que penetra por entre suas pernas; (7) o design da criatura é visivelmente priápico; quando emerge do peito aponta sua cabeça agressiva como se fosse um pênis; (8) no final do filme a criatura está entranhada (mimetizada) de tal modo aos equipamentos da nave de fuga que mal é percebida por Ripley; isso parece sugerir uma analogia entre as estratégias de vida da criatura e a empreitada mercantil e utilitarista de Nostromo.

O encouraçado Potemkin (1925), direção de Serguei Eisenstein

Filme-modelo. Dá para perceber que gerações e gerações de diretores o repetiram para aprender a fazer cinema. E os que de fato aprenderam com o Encouraçado Potemkin, depois conseguiram criar por si mesmos. O processo de montagem, edição e continuidade, é muito preciso, apesar de artesanal e analógico. Para o cinema do período o filme consegue transmitir uma dinâmica e uma energia (exigidas pela narrativa) jamais vista. Como exemplo desse processo lembro a sequência dos corpos semidespidos dos marinheiros dormindo nas redes: os pés descalços cujos planos, entremeados a outros, se sucedem num crescendo sutil, vão mostrando-sugerindo sua humilhante condição de subalternos.

Lembro também da sequência das postas de carne infestadas de vermes onde vemos um oficial a observar as reações dos marinheiros: os gestos e closes no rosto do personagem que se volta para um lado e outro são planejados para o corte da edição. Assim como acontece na cena da mulher que desce a escadaria com a sombrinha branca apontada para a câmera e que, ao aproximar-se, toma conta de toda a tela prefigurando o corte.  Os planos são montados com grande precisão quase didática. O personagem vai passar por uma porta, ele é visto de costas. Corte. No plano seguinte ele é visto de frente cruzando a porta. Isso é básico, mas é feito com grande domínio do recurso.

No ensaio Dramaturgia da forma do filme, Eisenstein, se refere à composição dos planos de três leões de mármore que, em confronto com o massacre nas escadarias de Odessa, metaforiza um leão de mármore que ganha vida ao reagir à tragédia por ele testemunhada. Na primeira parte do filme há uma sequência parecida: um corneteiro executa o toque de alvorada; é uma composição também de três planos em que o corneteiro é enquadrado de lado, de perfil, mas com pequenas alterações no enquadramento; mais próximo, mais distante etc; como o corneteiro quase não se mexe, parece uma sequência de três fotografias. O efeito é interessante e funciona à maravilha.

Assisti a esse filme apenas duas vezes. Na primeira vez consegui identificar no Potemkin a fonte de muitas coisas do cinema de Hitchcock. Na segunda vez acho que vislumbrei nos closes dos rostos da gente russa de Odessa, os rostos dos operários da mina de carvão que John Ford fotografa com uma baita compaixão em Howgreen was my valley (1942). Como eu disse, um filme-modelo.

(*) Ronald Augusto é poeta e ensaísta. Formado em Filosofia pela UFRGS. É autor de, entre outros, Homem ao Rubro (1983), Puya (1987), Kânhamo (1987), Vá de Valha (1992), Confissões Aplicadas (2004), No Assoalho Duro (2007), Cair de Costas (2012), Oliveira Silveira: poesia reunida (2012), Decupagens Assim (2012), Empresto do Visitante (2013) e À Ipásia que o espera (2016). Dá expediente no blog www.poesia-pau.blogspot.com e é colunista do portal de notícias Sul21: http://www.sul21.com.br/editoria/colunas/ronald-augusto/

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