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22 de fevereiro de 2019
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10:30

A difícil floração da língua de Cosmorama

Por
Sul 21
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A difícil floração da língua de Cosmorama
A difícil floração da língua de Cosmorama
Reprodução

Ronald Augusto (*) 

Mariel Reis enfeixa entre as capas de Cosmorama um conjunto de objetos verbais cujo andamento, às vezes frasal (índice da vertente prosa de sua sensibilidade) e, outras vezes, disposto aos traços verticais da arte do verso (a justaposição reiterativa do poema a que está atento) se projeta sobre uma série de imagens, quadros, cronologias e takes emotivo-intelectivos transfigurados em um apetite de linguagem que não se satisfaz com a simples demonstração nem com a exposição do que quer que seja. Mariel Reis procura e depara a sua linguagem poética (sistema de signos estéticos) que se resolve em lance expressivo, discurso convicto de suas convenções e ficto na maior parte dos sentimentos que metaforiza ao leitor. Vale ainda, para o caso, a tópica pessoana do poeta como fingidor, o que não significa, entretanto, que Mariel Reis ratifique o cinismo irônico dos nossos dias.

O título do livro é apropriado, pois a linguagem da poesia é um instrumento ou uma espécie de tecnologia por meio da qual vemos cenografias em conflito. Mariel Reis não se apequena diante do desafio que, advirta-se, não é o de conquistar uma estabilidade ao dissenso do real, mas, antes, o de irrigar suas contradições e sua instabilidade. Inclusive porque a linguagem – e, sobretudo, a da poesia – resulta em um jogo equívoco. E o mundo, em sua dimensão trágica, a um só tempo, é emoldurado e sacudido pela linguagem. As imagens do poema são lacunares, insolventes, distorcem o mundo: não o conhecemos mais como a palma da nossa mão. No espelho do mundo da linguagem observamos o mundo feito uma série de fragmentos divergentes. Não é por outra razão que o poeta, esse ego scriptor, ser de e na linguagem, escreve:

Em algum lugar
Minha voz se alcança
E estilhaça.

As valências da linguagem de Mariel Reis se referem lateralmente à tradição; não há como negar traços pós-modernos em sua poesia que, a par de ser, todavia, elegíaca, tem ânimo para desferir um esconjuro contra os “Ramos de um tempo/ Incerto” relativamente às normas do poeticamente correto. Identificando-o a princípio como um pós-moderno, não o faço com o intento de censurá-lo ou de coisa parecida. O modernismo (sua desmesura é a vanguarda) se tornou tão oficial que a sua reação, isto é, o pós-modernismo, resta sempre em nosso imaginário como uma anedota conservadora. Mas não há conservadorismo em Cosmorama. Mariel Reis presentifica em seus poemas o pensamento-arte de que o pós-moderno é, em fim de contas, legatário do maior valor do projeto moderno, a saber, a liberdade. Entre um percurso textual em formação e a saturação de referências canônicas e contracanônicas, o poeta, em seu tráfego livre pelas linguagens, nos oferta em cada poema:

Todas as palavras
Um itinerário:
De sombras e vazio
No aspecto gráfico.

Algum eco de logopeia atravessa esses itinerários transfigurados em Cosmorama; a coreografia de uma razão sensível vazada em poemas quase narrativos. A síntese necessária entre cantar e contar, base sobre a qual se formou a produção poética universal, põe em movimento esse conjunto de poemas. De outra parte, a discursividade mais arejada de Mariel Reis convive com as formas breves, eis um belo exemplo, a peça intitulada “Sombras”:

Sombras:
A Claridade
Envelhece devagar.

Mas o vago respiro retrô de seus poemas, que tem a ver mais com uma determinação do que com um gesto reativo e inercial – já que não está em causa emular o passado, mas demarcá-lo sincronicamente visando a propor respostas, ainda que provisórias, aos desafios estéticos de agora-agora – não faz o poeta descurar do estado de coisas do presente e da nossa anomia. É por essa razão que Mariel Reis desvia os olhos dos drummondianos “inocentes do Leblon” para a Ipanema contemporânea, relendo inter e paratextualmente esses novos personagens a partir de outra perspectiva. O poema nos revela que a inocência parece se manter intacta, mas sua continuidade, não obstante as violentas mudanças de lá até aqui, se constitui em perversão extrema, assim podemos ler em “IPANEMA miséria S/A” o seguinte:

Daqui deste pedaço da areia
O país
Parece ir bem…
Sem nenhuma mazela
Nenhum problema
Em absoluta conformidade
Com o antigo dito:
– Sol, sombra e água – fresca.

Cosmorama transborda a retro, isto é, sua novidade intrínseca repete para aprender no movimento de aprender para criar. Essa, por assim dizer, velha-guarda que informa sua poesia opera, em fim de contas, mais nova do que qualquer outro experimento que algum dos seus iguais tenha feito nesse momento. Em Cosmorama, o verso e suas fraturas são encarados como uma estrutura significante por si mesma; Mariel encarece sua independência, inclusive, perante a própria poesia. O verso como um meio, media. A poesia de Mariel Reis, atenta a toda uma tradição que a precede, se nutre dessa vertente sígnica de matriz oral. Cosmorama põe à prova a partitura vocal do verso, música falada à boca pequena “Sobre a difícil floração da língua”.

(*) Ronald Augusto nasceu em Rio Grande (RS) a 04 de agosto de 1961. Poeta, músico, letrista e crítico de poesia. É autor de, entre outros, Homem ao Rubro (1983), Puya (1987), Kânhamo (1987), Vá de Valha (1992), Confissões Aplicadas (2004), No Assoalho Duro (2007), Cair de Costas (2012) e Decupagens Assim (2012). Dá expediente no blog www.poesia-pau.blogspot.com 

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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