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24 de agosto de 2018
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10:52

Fragmentos à guisa de coluna

Por
Sul 21
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Fragmentos à guisa de coluna
Fragmentos à guisa de coluna
Caligrama criado pelo autor.

Ronald Augusto (*)

 I

Não é fácil fazer poesia. No entanto, é de espantar como há tanto fazedor aqui e acolá. Ter uma opinião, um textão. Ter poesias e versos que são um soco no estômago. Você deve ter uma opinião, mesmo que seja uma opinião de merda. Você deve publicar seus versos, mesmo que sejam uns versos imperitos. Você pode se referir aos seus dois livros de poesias em termos de que representam a sua “obra”. Você é um ativista. Opiniões e poesias que são um soco no estômago o farão um ativista. Um poeta que tem uma obra e que fala suas poesias com um gestual rapper. Rimar opiniões. O ativista romântico. O ativista metaforizante. O ativista do trocadilho. Há editores para todos.

A sofreguidão com que hoje opinamos – escritores, leitores e seguidores – a respeito de todos os temas nas redes sociais, acaba por fazer triunfar um clima generalizado de ativismo ético-político bastante histriônico, onde é imperioso assumir uma posição a qualquer custo e o quanto antes. Ter uma opinião e, por exemplo, escrever um poema comprometido com uma causa, hoje, indicam gestos em que quase não identificamos qualquer diferença entre eles. Contra esse cenário de fundo, um poema que aparentemente não dá a menor pelota para representatividades ou que põe em dúvida o real enquanto objeto de mera análise política e social, é lido como coisa elitista e alienante; e o poeta, nesse caso, não será um incômodo, mas apenas um traidor.

II

Grosso modo, o crítico – e no que diz respeito à essência de sua atividade – com frequência, para recuperar-se de si ou para esquecer de si mesmo, encontra abrigo (cava uma zona de escape ou a sua própria cova) em alguma inimizade ou assunto com o qual mantenha uma forma de antipatia intelectual e intransigência leviana. Nos melhores casos essa prática pode resultar em boas análises, pois o que está em causa, em que pese certa carência de fair play, é a polêmica necessária e salutar, a suspeição que não se presta ao beija-mão. Desgraçadamente, a rotina inercial e fora da medida de tal procedimento crítico se converte em estupidez.

III

Como funciona o jogo do “telefone sem fio” = comentários sobre postagens polêmicas no facebook: comece por organizar os facefriends, um conectado ao outro de forma randômica. O primeiro facefriend-jogador posta uma frase/mensagem controversa (ex.: “David Luiz é um evangélico chato”) no seu mural. Cada facefriend após ser notificado ou ter visualizado a mensagem comenta qualquer coisa sem pensar o suficiente. O colega seguinte tenta fazer algo melhor e acaba piorando; o próximo xinga a Dilma; alguém brada que estamos carentes de ética; enfim, até que uma pessoa, lá pelas tantas, tenta ser a voz da moderação dizendo algo aparentemente razoável como um adágio, mas ninguém se importa mais. No fim, a mensagem muitas vezes chega em seu limite completamente diferente de como era na origem. Esse é o objetivo do jogo.

IV

Uns e outros se referem sempre de forma negativa ao que se convencionou chamar de “futebol de resultado”, colocando em suas falas à respeito do tópico um amargo grão de censura. Mas o que significa, afinal, “futebol de resultado”? O mais das vezes quer dizer que os que jogam de maneira pragmática, isto é, se for preciso jogar “feio” para, lá na frente, ser campeão, eles assim o farão. Na verdade os críticos reforçam o falso dilema entre o jogo objetivo e o jogo bonito. O futebol, como qualquer outro esporte, visa à vitória, o resultado tem que ser a vitória. Assim, desde que uma equipe use de todos os meios lícitos possíveis (desde a mais alta beleza até a mais crua objetividade) para alcançar esse resultado último, está valendo. Ok, às vezes a ilícita intervenção divina derrubará esse argumento.

V

A remissão algo nostálgica a um “senso crítico” e ao “arsenal de qualidades que isso exige”, bem como postular a “importante reverberação social” provocada pela atividade crítica quando exercida nesses moldes paradigmáticos já perdidos no tempo, enfim, essa crítica que “ajuda a fundar civilizações” pode ser interessante, mas, por enquanto, não é possível. Alguém acrescentará que a crítica não tem a menor obrigação de ser interessante. Certo, a crítica pode prescindir dessa obrigação, mas não de outras hipóteses de leitura, onde estão implicadas, inclusive, as condições culturais do presente. Qual a crítica possível a ser oferecida diante de um presumido panorama de irrelevância? Quando a análise sai de cena o que ocupa o seu lugar?

Neste momento em que também a crítica se apresenta irrelevante ou deprimida, pois a carta de alforria segundo a qual “praticamente não há mais maus escritores, tampouco escritores geniais” (graças a uma série de “fatores virtuosos” tais como, entre outros, a democratização da cultura, os blogs literários, o aquecimento econômico, as pequenas editoras, as feiras literárias) transforma em anacronismo o debate que tenta colocar a produção presente numa perspectiva crítica. A mera publicação de um livro por uma editora competente na publicidade do seu produto confere ao autor a condição de vencedor. E isso já é o bastante para que a seguir, perante a opinião do sistema, a obra justifique sua aparição ou consiga dar alguma satisfação no que concerne à qualidade artística ou literária de que certamente carece, pois do contrário dispensaria a publicidade indecorosa. De outra parte, quanto mais poderosa é a casa editorial do escritor, menores são as chances de que qualquer crítica que venha à tona não seja tachada de revanchista ou invejosa. Parece não haver argumentos pertinentes contra o fato consumado dessa consagração meramente editorial (resultante da publicação, às vezes, de duas ou três obras de péssimo nível) com que se tenta calar uma análise crítica possível.

VI

Já se tornou quase um lugar comum defender a ideia de que o leitor moderno está condenado a um estado, não digo racional, mas, no mínimo, vigilante em resposta, ou relativamente, a uma “entrega incondicional” que se lhe cobrava até há bem pouco tempo, durante o ato de leitura. Não obstante o conceito de leitura de prazer, o leitor (não sabemos se o da alta literatura) de hoje confina com o especialista, não passa de um árduo degustador dos melhores ou piores vinhos: está apto a enfrentar qualquer desafio. Nas mãos deste sujeito cultivado, amante da beleza difícil, as tortuosidades da poesia são superestimadas de maneira a fazer mais impressionantes suas qualidades intelectuais e sua hiperestesia.

VII

No que você está pensando, meu caro facefriend?

Que enquanto os bons poetas importam (sincronia) para a poesia, os poetas ruins só importam (diacronia) para a história da poesia.

Que não quero saber de lirismo, que não é libertação; nem de haicai, que não é iluminação.

Que as pessoas animadas, otimistas e de bem com a vida, são chamadas por alguns de “positivistas”, mas esses tansos não se dão conta de que isso é um malapropismo; Auguste Comte barateado, rebaixado além do necessário.

Que o Afonso Romano de Sant’anna é o poeta com mais cabelo na orelha de que se tem notícia.

Que eu não preciso gostar de todos, mas de alguns.

VIII

É sempre bom lembrar que o movimento verde-amarelo, criado em 1924 por escritores e intelectuais de matriz integralista (como contraposição à antropofagia oswaldiana, mais à esquerda), tinha a ANTA como o seu animal símbolo.

IX

Há regras para o ritual da corte, para o doce idílio do namoro em seu começo? Sim e não. Sim, enquanto você ainda não conhece muito bem seu parceiro; e não, depois que você já o conhece. O mesmo vale para a poesia. No início é necessário observar uma série de regras, fundamentos, noções, o legado da tradição, as rupturas. Depois, quando esses tópicos são assimilados, não há mais regras.

X

O verso com cadência (reiteração regular, porém flexível com relação aos padrões rítmicos, portanto, metrificado ou não) talvez constitua a condição necessária da poesia, quer dizer, o primeiro movimento em direção à poesia, mas a rima não, de modo nenhum. A rima ajuda na memorização, os provérbios comprovam isso. No entanto, a propriedade de ficar na memória graças à rima, não diz nada sobre a qualidade de um verso.

XI

The Bad and the Beautiful (1952), direção de Vincente Minnelli. Esse filme ilustra muito bem uma observação do Truffaut segundo a qual um filme bom dá tanto trabalho quanto um filme ruim. Os dramas privados de atores, diretores, roteiristas e produtores, dramas adjacentes à realização do filme, formam uma pasta emocional inextrincável da emulsão fotográfica, base material da ficção visual que vem à tona e se dissipa em meio aos planos que se alternam diante de nossos olhos.

(*) Ronald Augusto é poeta, músico, letrista e ensaísta. É autor de, entre outros, Homem ao Rubro (1983), Puya (1987), Kânhamo (1987), Vá de Valha (1992), Confissões Aplicadas (2004), No Assoalho Duro (2007), Cair de Costas (2012), Oliveira Silveira: poesia reunida (2012), Decupagens Assim (2012) e Empresto do Visitante (2013). Dá expediente no blog www.poesia-pau.blogspot.com e é colunista do site http://www.sul21.com.br/jornal/  

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.

 


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