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10 de agosto de 2018
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10:30

Apontamentos à margem da poesia e da vida de Cruz e Sousa (II)

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Sul 21
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Apontamentos à margem da poesia e da vida de Cruz e Sousa (II)
Apontamentos à margem da poesia e da vida de Cruz e Sousa (II)
Cruz e Souza (Reprodução)

 Ronald Augusto (*)

Alguns fatos de uma vida que é sonho (**)

Na infância, Cruz e Sousa, filho de escravos libertos, foi tutelado pela família do Marechal Guilherme Xavier de Sousa. Na casa do Marechal, o menino Cruz e Sousa aprendeu a ler e escrever. Cruz e Sousa vivia assim uma espécie de vida dupla, pois não fora abandonado de fato por seus genitores e, ao mesmo tempo, era mimado e educado pela família do ex-senhor com todos os requintes, requisitos e cuidados normais aos códigos de civilidade da Casa-Grande. A vida madrasta não dera ao Marechal Guilherme Xavier e sua esposa, D. Clarinda, um filho natural. Sendo assim, coube ao moleque Cruz e Sousa tornar-se o filho postiço do casal desinteressado.

Com a morte dos ex-senhores, Cruz e Sousa volta ao convívio dos seus pais. Guilherme da Cruz, mestre-pedreiro, e Carolina Eva da Conceição lutam com dificuldade e se desdobram ao máximo para dar prosseguimento aos estudos nos quais o jovem Cruz e Sousa se iniciara no período em que se viu sob as graças dos antigos tutores. Em 1881, Cruz e Sousa e Virgílio Várzea, insatisfeitos com a monotonia da sua “cidadezinha qualquer”, perturbam a mentalidade local fundando o jornal Colombo. Um ano depois criam a Folha Popular. Naturalmente, a irreverência dos jovens não tarda a suscitar animosidades. Aproveitando o ambiente, por assim dizer, desfavorável , Cruz e Sousa se integra a uma companhia de teatro que se apresentava na ilha àquela altura. Quando a caravana teatral deixa Desterro, no ano de 1883, o poeta a acompanha desempenhando a função de ponto. Cruz e Sousa percorre com ela boa parte do país.

Durante cerca de dois anos o poeta segue com a companhia teatral, experimentando, pode-se se dizer, como que uma viagem de formação. O jovem inquieto mergulha no espetáculo do mundo. Faz um percurso que vai dos ares provincianos às ideias renovadoras do fin-de-siècle, cujo palco é a cidade e suas populações em conflito de interesses. Assim, este andarilho com os olhos marejados de névoa lisérgica, segue vivenciando o mambembe e o épico que de alguma maneira constituem a atmosfera da empresa pé-na-estrada de sua experiência como ponto. Vida, drama e poesia. Nesta altura, Cruz e Sousa engaja-se na luta abolicionista. Espalha sua poesia aos quatro ventos participando dos anseios de mudança. A agitação cosmopolita o seduz de uma vez por todas. O lado dandy do Dante negro. Com efeito, as luzes da cidade aparecem delicadamente recriadas em sua poesia; constitui-se numa referência intrínseca.

No entanto, em 1885 o poeta volta à terra-ilha natal. Colabora com O Moleque (étimo de origem africana, não custa lembrar), jornal combativo e iconoclasta que realiza praticamente sozinho escrevendo artigos, crônicas, noticiário geral e inclusive assumindo a parte gráfico-visual (desenhos, ilustrações). Usa o próprio nome ou pseudônimos para assinar as peças desta diatribe multifacetada.

1890 assinala o ano em que Cruz e Sousa se muda para o Rio de Janeiro. Começa a ler de maneira insaciável os escritores franceses, e, principalmente, Charles Baudelaire que é, não por acaso, o autor da “epígrafe emblemática” (Salim Miguel dixit) do seu livro de estreia, Broquéis, publicado em 1893. No mesmo ano lança Missal, este de prosa poética. Segundo a historiografia literária, com esses dois volumes Cruz e Sousa inaugura o movimento simbolista brasileiro. Mas Cruz e Sousa, assim como Baudelaire, não é um simbolista em sentido estrito. Há uma revolta na dicção poética de Cruz que, em alguns momentos contradiz aquela maciez roçagante, do tipo mallarmiana, por meio da qual tão bem se manifesta o ideal estético da sugestão simbolista. No soneto “Escravocratas” percebe-se à maravilha este outro simbolismo do poeta negro:

Oh! trânsfugas do bem que sob o manto régio
Manhosos, agachados – bem como um crocodilo,
Viveis sensualmente à luz dum privilégio
Na pose bestial dum cágado tranquilo.

Eu rio-me de vós e cravo-vos as setas
Ardentes do olhar – formando uma vergasta
Dos raios mil do sol, das iras dos poetas,
E vibro-vos à espinha – enquanto o grande basta

O basta gigantesco , imenso, extraordinário –
Da branca consciência – o rútilo sacrário
No tímpano do ouvido – audaz me não soar.

Eu quero em rude verso altivo adamastórico
Vermelho, colossal, d’estrépito, gongórico,
Castrar-vos como um touro – ouvindo-vos urrar!

Apesar disso, ainda é recorrente a disposição algo maledicente de apresentá-lo como o negro-branco, no sentido de traidor de sua “essência”, talvez negra. A sustentar esta ideia estão as famosas formas alvas, vaporosas, surgindo feito imensos icebergs no tecido poético engendrado por Cruz e Sousa, e que evidenciariam um complexo, um problema, um sintoma. Com efeito, a “brancura” com seus múltiplos e contraditórios sentidos – morte, vazio, esquecimento, pureza, luz – está presente na poesia de Cruz e Sousa, por outro lado, da mesma forma podemos percebê-la na de outros grandes representantes do simbolismo tal como em Rimbaud, Mallarmé e Verlaine.

No entanto, como já nos referimos mais acima, outro modo de composição permeia o simbolismo do poeta negro. À diferença dos simbolistas branco-europeus, perplexos em face da folha de papel defendida por sua brancura mesma, atormentados na busca de um sentido mais puro para as palavras, Cruz e Sousa opta por não se dobrar ao tédio estéril do flâneur devotado à miragem da poesia pura. Enquanto, por exemplo, Mallarmé diz que fuma apenas para lançar um pouco de fumaça entre ele e o mundo, Cruz e Sousa esmurra uma parede tremenda de preconceitos erguida justamente para mantê-lo à margem deste mesmo mundo que o poeta francês sonha ver dissolvido em brumas. Enquanto Rimbaud renuncia à poesia e parte para a África onde vai dedicar-se ao tráfico de armas e de escravos, Cruz e Sousa escreve em apoio ao abolicionismo, arremessa pedradas verbais contra os escravocratas e leva a cabo o longo poema em prosa “Emparedado” que tematiza, entre outras coisas, por meio de um horror irônico, as cogitações nervosas e autocríticas de um criador desmesurado olhando desafiadoramente na cara da estupidez humana representada, no caso em particular, pelo atraso social brasileiro – e que prossegue até os nossos dias. Enfim, Cruz e Sousa não incorpora à sua linguagem uma atitude inteiramente refratária à realidade que o cerca. Com Cruz e Sousa, a poesia eventualmente branca – quer seja simbolista ou não – torna-se também negra. O simbolismo dos historiadores literários precisou adaptar-se a Cruz e Sousa e não o contrário.

(*) Poeta, músico, letrista e crítico de poesia. É autor de, entre outros, Confissões Aplicadas (2004), Cair de Costas (2012), Decupagens Assim (2012), Empresto do Visitante (2013) e Nem Raro Nem Claro (2015). Dá expediente no blog www.poesia-pau.blogspot.com

(**) Segunda e última parte da coluna publicada em 27 de julho de 2018.


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