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13 de julho de 2018
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10:59

Trovar poetas

Por
Sul 21
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Trovar poetas
Trovar poetas
Reprodução/Arquivo pessoal
Reprodução/Arquivo pessoal

 Ronald Augusto (*)  

Em um artigo intitulado “Deputados, chuchadores e tráfico poético”, publicado já há algum tempo no website www.germinaliteratura.com.br, o poeta-crítico Cândido Rolim, ao tocar no nervo da questão que diz respeito à maneira pela qual nos relacionamos com o passado da tradição literária, propõe uma leitura neográfica para um dos exemplares da poética de Luís Gama (1830-1882).

Geralmente lemos os poetas mortos por meio de um discurso em estado de lápide, vale dizer, as afirmações e/ou suspeições se prestam, quando muito, a inscrições tumulares. O resultado é que tanto os repudiados quanto os incensados, em fim de contas, acabam se encontrando em uma zona de indiferença ou recíproca intransigência estética. A rigor, o senso comum – ou o censor interno do leitor – não sabe explicar porque razão este autor, e não aquele, experimenta uma temporada no inferno. Mas, neste ponto, sem dúvida, colaboram as disputas de poder inerentes à política literária do tempo, isto é, tanto as que se deram no passado, quanto as que vivenciamos no presente.

De fato, o poeta de Pedra Habitada, no artigo citado, se dedica a fazer uma aguda tresleitura indisciplinada de alguns elementos de forma e fundo presentes no poema “Lá vai verso!” do poeta baiano. Cândido Rolim se entrega a uma escavação sacrílega, embaralhando os restos mortais da poesia de Luís Gama.

Entretanto, agora, abro um “parêntese irritante” com vistas a polemizar com o crítico-poeta. Embora Rolim discorde de uma ideia que uma feita expus num dos fragmentos críticos do meu blog, a saber, a idéia de que o leitor (inteligente) pode re-inventar analogamente e de modo performativo, quer em termos sintáticos, quer em termos semânticos as vacilações e o esforço envolvidos no ato da elaboração do poema – e ao contrário do que Cândido pensa, isso não pressupõe “concordância metafísica dos atos”, mas, antes, aponta para um embate dialógico entre fatura (fazer poético) e fratura (incisão em busca dos sentidos: tarefa de que se investe o leitor desregrado e inventivo) que, aliás, justifica o clichê de que o escritor é antes de tudo um leitor -, continuando, embora o poeta-crítico discorde, sua “operação tradutória”, (des)dizendo, por exemplo, “chuchadores” em termos de xuxadores, é de uma agudeza genial, uma operação traidora de tamanha agilidade que o faz optar por bulir não só nos significados, mas nos significantes. Ouçamos Luís Gama, por ele mesmo: “Espertos eleitores de encomenda,/ Deputados, Ministros, Senadores,/ Galfarros Diplomatas – chuchadores,/ De quem reza a cartilha da esperteza”.

Com semelhante gesto transgressor, Cândido Rolim afirma o poema como um tipo de linguagem que não é nem “fiel” nem “infiel” ao que quer que seja, senão que tem uma determinação própria. Portanto, Luís Gama – via Cândido Rolim – não disse isso (“xuxadores”), mas disse, isto é, agora, disse. Pois, “disso o leitor, alheio a si, se encarrega com mais eficácia” e acídia. Fecho o parênteses.

Cândido Rolim, portanto, interpreta por um meneio pop, bastante sarcástico, um poeta que, seja por sua situação muito pretérita, seja por sua militância abolicionista – e até hoje, seu gesto político merece, nos compêndios, mais relevo do que sua poesia -, tende a ser lido com um respeito mais histórico e diacrônico do que de um ponto de vista criativo, “adaptado-condenado ao mundo de hoje”. Em suma, tal leitura, como a operada pelo autor de Fragma, que revigora e revoga a ambígua duração de fundo-forma da arte verbal, acaba sendo fiel, pelo avesso certo, à “bodarrada” do poeta baiano, refiro-me ao conhecido poema das Trovas Burlescas (1859) onde, segundo Haroldo de Campos, Luís Gama “arrasa com a prosápia dos nobres, dos brancos”, extremados xuxadores. Mas, o poeta, graças a uma consciência luciferina, também se vê implicado na arenga com que desfaz os poderosos, pois em troca, eles hão de chamá-lo “tarelo,/ Bode, negro, Mongibelo;/ Porém – prossegue Gama – eu que não me abalo,/ Vou tangendo o meu badalo/ (…) / Se negro sou, ou sou bode/ Pouco importa. O que isto pode?/ Bodes há de toda casta,/ (…) / Bodes negros, bodes brancos…”. Luís Gama é um poeta cuja linhagem remonta a Gregório de Matos e a François Villon, representantes do “duro” em contraste com o “suave” na arte da poesia. Contudo, o difícil é apontar essa dureza e a impertinência do riso sarcástico contra si mesmo. Felizmente, quanto a este quesito, Luís Gama também não deve nada aos seus parceiros, pois ele, a plenos pulmões, desconta e canta: “Aqui, nesta boa terra/ Marram todos, tudo berra/ (…) / Em todos há meus parentes/ (…)/ Folgue e brinque a bodaria;/ Cesse pois a matinada,/ Porque tudo é bodarrada”. Golpes de linguagem, golpes de sentido.

Através da interpretação, por assim dizer, de cunho macunaímico de Cândido Rolim, Luís Gama ri por último voltado para o agora e, além disso, ao lado de Brás Cubas, persona às avessas de Machado de Assis, sete palmos abaixo de nós – sim, suponho que eles detestariam restar no céu arrodeados de querubins branquinhos feito algodão.

(*) Poeta, músico, letrista e crítico de poesia. É autor de, entre outros, Confissões Aplicadas (2004), Cair de Costas (2012), Decupagens Assim (2012), Empresto do Visitante (2013) e Nem raro nem claro (2015). Dá expediente no blog www.poesia-pau.blogspot.com  e escreve quinzenalmente aqui no http://www.sul21.com.br/jornal/


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