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27 de julho de 2018
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10:30

Apontamentos à margem da poesia e da vida de Cruz e Sousa

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Sul 21
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Apontamentos à margem da poesia e da vida de Cruz e Sousa
Apontamentos à margem da poesia e da vida de Cruz e Sousa
Cruz e Sousa (Reprodução)

Ronald Augusto (*)

Em 1898, cerca de um ano depois de haver concluído a redação de Faróis e Evocações – e da publicação de Un Coup de Dés, de Stéphane Mallarmé -, Cruz e Sousa morre em estado de penúria extrema vítima de tuberculose em Sítio (MG), para onde se dirigira, inutilmente, em busca de melhora. Seu corpo desce para o Rio de Janeiro num vagão utilizado para o transporte de gado.

“Ninguém sentiu teu espasmo obscuro/ (…) / O mundo para ti foi negro e duro”. Estes versos, do soneto “Vida Obscura” (Últimos Sonetos, 1905) bem poderiam servir de epitáfio à memória não só do escritor negro. Por certo também evocariam todo um elenco de artistas que viveram, cada qual a seu modo, vidas que poderiam ter sido e que não foram. Alguns exemplos: (1) Edgard Allan Poe (1809-49), poeta e prosador, patriarca do simbolismo que influenciou decisivamente a poesia de Baudelaire – que, por seu turno, influenciaria Cruz e Sousa – e Mallarmé; Poe, filho de um casal de atores pobres e famélicos, foi adotado por um gentleman do sul dos Estados Unidos. Não obstante este lance afortunado em sua vida, tratou de findar os seus conturbados dias bêbado e miserável em meio a sarjeta. (2) François Villon (1431-?), “por muitos, considerado o primeiro poeta moderno da França” (P. E. da Silva Ramos dixit); foi um homicida e ladrão, e por pouco não acabou condenado à forca; viveu largo tempo no exílio e mais outro tanto às ocultas no submundo da criminalidade. Ezra Pound compara-o a Dante. (3) Vielimir Khlébnikov (1885-1922), um homem sem a menor aptidão para as coisas práticas e sensatas da vida, viveu quase sempre à margem dela, mesmo tendo concluído (não se sabe como) os estudos formais; inventor da poesia russa moderna. Uma espécie de homeless que “morreu de fome em santalov” (Haroldo de Campos dixit) com a cabeça repousada sobre um travesseiro de manuscritos. Estes três exemplos já são o bastante. A lista não teria fim.

Digamos, então, que até mais ou menos o final do século 19 e início do 20, casos e transes como estes e o de Cruz e Sousa não chegam a constituir grande surpresa. Ademais, a voga romântica persistia muito forte, e mesmo justificava – inclusive ou de preferência – as reações mais patológicas ou controversas aos vários condicionamentos político-sociais de então, forjados segundo os moldes do positivismo. No entanto, se é verdade que para muitos escritores e poetas o mundo foi e tem sido generosamente “negro e duro”, ou “áspero e forte”, poucos, por outro lado, podem-se “vangloriar” de haver passado um “dia de negro” em pleno fin-de-siècle brasileiro: escravidão, república recém-nascida, Canudos. Um grão de sal na memória do leitor.

Cruz e Sousa, como se pode imaginar, não passou um dia, mas uma vida inteira deles: uma vida de negro, para dizer o mínimo. E sem o glamour dos panos coloridos e sabores picantes que agora identificamos ao gesto afirmativo dos diversos movimentos negros. Cruz e Sousa experimentou dias e noites de uma vida estilhaçada. Por exemplo, imaginemos o vidro cortante dos olhos vidrados de Gavita, sua mulher, enlouquecida (vencida pela fome e anemia, justificam alguns pesquisadores) e metida num banzo sem fundo, infernal. Mudez da crioula doida. Este o sentido trágico, ou apenas um dos sentidos do verso (e da entropia entranhada à existência do poeta) citado lá no início do nosso texto: o mundo para ti foi negro e duro. Mas Cruz e Sousa ainda é capaz de submeter sua experiência dolorosa ao crivo da função poética da linguagem, para ver até que ponto a síntese entre ambas é de fato possível.

No poema em causa, Cruz e Sousa se aplica nesta aventura no momento em que tira proveito da polissemia do vocábulo “cruz”. O poeta – como frequentador da escola mefistofélica – se reconhece a si mesmo como símbolo. Um drama ambulante. Vida e arte mescladas num nome-desígnio: cruz. O homem preso ao nome. Persona. Cruz e Sousa eleva o seu nome a altas temperaturas informacionais, confinando mais com a ironia do que com o sentimentalismo autocomplacente: o poeta salta de dentro do homem para estranhar o nome que carrega entranhado em si próprio. Do ponto de vista de um jogo paronomástico, estaríamos diante de algo como um desatino-sentido congenial a um destino que, por sua vez, é a hipostasia de um estilo. Assim, talvez fosse o momento de ressaltar a seguinte citação extraída do poema: “Sei que cruz infernal prendeu-te os braços”, (grifo meu). Além disso, uma outra também seria bastante sugestiva, e ela diz assim: “…En somme, le style… c’est le diable!” (Paul Valéry, Mon Faust) Vejamos alguns excertos do poema:

VIDA OBSCURA

Ninguém sentiu o teu espasmo obscuro,
Ó ser humilde entre os humildes seres.
Embriagado, tonto dos prazeres,
O mundo para ti foi negro e duro.

Atravessaste num silêncio escuro
A vida presa a trágicos deveres

(…)

Mas eu que sempre te segui os passos
Sei que cruz infernal prendeu-te os braços
E o teu suspiro como foi profundo!

João de Cruz e Sousa, filho de escravos, nasceu a 24 de novembro de 1862, na cidade de Desterro, atual Florianópolis (SC). Cruz e Sousa, tentou, talvez como nenhum escritor brasileiro tentara até então, romper o molde das contingências históricas e sociais. Em muitos aspectos foi derrotado, mas no principal teve êxito, embora em vida não tenha sido testemunha disso. Os fatos de sua biografia evidenciam os grandes obstáculos que teve de enfrentar para levar a termo seu projeto criativo, o qual, em sentido amplo, dizia respeito tanto ao indivíduo no seu anseio de tornar possível uma vida mais digna para si e os seus, quanto ao artista que marca a sua ação independente sobre o mundo mediante uma visão desautomatizada e contestadora acerca do mesmo.

Via de regra, os transes, os padecimentos de um poeta sempre acabam num livro. Para que o sangue vire letra, para que o sentimento se resolva em símbolo, isto é, figura, faz-se necessário trabalho sobre a matéria prima. Vale dizer, é preciso fazer. Os antigos davam a isto o nome de poesia. Cruz e Sousa estava a par disso, e ia além. Para ele, poesia era música, arte, combinatória. Articulação e descentramento. Fazer. E acontecer, inclusive, no que foi (mal)feito. Encarnar. O descarnado da arte – seus artifícios – se incorpora a própria vida.  Dir-se-ia que a arte de Cruz e Sousa se desenha a partir da interdição do seu corpo negro. Pode ser. E o poema tem algo do estado de coisas do seu espírito. O poeta negro conspira no limite entre vida e arte. Há som, sombra, luz e fúria na poesia deste homem da ilha do Desterro. Assim, malgrado a condição emparedada em que o mundo insistia em confiná-lo – ou mesmo, graças a ela -, Cruz e Sousa produziu sua poesia dissoluta, provocante, cuja pulsão libertária sugere-nos que é “escrita em sonho” e escrava da “embriaguez do ritmo, da sonoridade, da música das palavras”. O efêmero da poesia, seu fracasso, seus “sons intraduzíveis”.

A consciência de Cruz e Sousa sobre os limites do discurso poético é de uma modernidade impressionante. Cruz fez o dever de casa:

TORTURA ETERNA

Impotência cruel, ó vã tortura!
Ó Força inútil, ansiedade humana!
Ó círculos dantescos da loucura
Ó luta, ó luta secular, insana!

Que tu não possas, Alma soberana,
Perpetuamente refulgir na Altura,
Na Aleluia da Luz, na clara Hosana
Do Sol, cantar, imortalmente pura.

Que tu não possas, Sentimento ardente,
Viver, vibrar nos brilhos do ar fremente,
Por entre as chamas, os clarões supernos.

Ó sons intraduzíveis, Formas, Cores!…
Ah! Que eu não possa eternizar as dores
Nos bronzes e nos mármores eternos!

A visão embriagada, satânica e dúplice de Cruz e Sousa, não deriva apenas, como supõem alguns críticos mais apressados, de uma mente atormentada ou recalcada, que não soube como construir meios mais objetivos de autodefesa às obscurantistas regras sociais que à época se destinavam ao abafamento da vontade dos não-brancos. Um ponto de vista interessante para que se possa fruir em profundidade a poesia de Cruz e Sousa é o que entende o inusitado dessa poesia como a prática intransigente de uma estética que só se concebe como estranhamento (húbris). Uma poética descentrada que pressupõe uma total ruptura com as mais variadas formas de determinismos, sejam eles históricos, geográficos, étnicos. A obra de Cruz e Sousa é um milagre antinaturalista. Sua poesia torce o pescoço à voz de comando do meio, voz que só aparentemente é toda poderosa.

(*) Ronald Augusto é poeta, músico, letrista e crítico de poesia. É autor de, entre outros, Confissões Aplicadas (2004), Cair de Costas (2012), Decupagens Assim (2012), Empresto do Visitante (2013) e Nem Raro Nem Claro (2015). Dá expediente no blog www.poesia-pau.blogspot.com

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.

 


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