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4 de junho de 2018
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10:29

Cenas do lado de fora do gabinete da crise

Por
Sul 21
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Cenas do lado de fora do gabinete da crise
Cenas do lado de fora do gabinete da crise
“A essência do livre mercado é isso: um salve-se quem puder”. (Foto: Guilherme Santos/Sul21)

Ronald Augusto (*)

 I

Uma mulher negra espremida entre centenas de usuários de ônibus aproveita as câmeras de TV e manda um recado para sinhazinha: “a patroa quer que a gente chegue na hora, mas como é que faz se não tem ônibus?”. Um dia de negro, dejà vu em meio aos dias da paralisação dos caminhoneiros.

Nesses momentos de crise e de profunda histeria social e política, em que a face monstruosa do Brasil se revela, só existe uma verdade: não sou caminhoneiro, não sou de direita, não sou de esquerda; sou negro.

II

Os repórteres dos telejornais não conseguem enfileirar duas frases sem deixar escapar uma “tirada” poética. Só que os piores são os repórteres do esporte e, dentre eles, os que cobrem as coisas do futebol, cujo mestre dos males e dos malas é o Tino Marques. Enquanto assistia a uma matéria sobre a rodada do brasileirão surgiu isso, de repente: “quando tudo para [pausa, silêncio dramática] o futebol move”.

III

Será que a expressão “de onde menos se espera daí é que não vem nada mesmo” perdeu seu valor/poder de ironia? Parece que inadvertidamente algo surgiu de onde menos se esperava. Contudo, com letras imensas, os caminhoneiros (de SP) escrevem no pavimento da rodovia: “intervenção militar já!”.

IV

O que podemos no livre mercado. Ao vencedor uma saca de batatas que ontem custava 70 e hoje sai ao preço de 500 reais. A essência do livre mercado é isso: um salve-se quem puder. Esses que enchem o carrinho de compras no super, que levam todos os pacotes de papel higiênico, esses são os corruptíveis.

V

Frases que, na verdade, não dizem nada de relevante ou cujo significado só o Faustão sabe: (1) “mais resultado, menos estado”; e (2) “exigimos a demissão de toda classe política”.

VI

Não apoio nenhum tipo de intervenção, sobretudo literária.

VII

Acuados entre o dízimo e o diesel.

VIII

Programa Roda Viva. O adágio “se non è vero, è ben trovato” sempre me vem à mente quando ouço o Ciro Gomes. No mínimo é divertido acompanhar o tour de force de sua ácida retórica através de alguns temas polêmicos. Dá a impressão de que, hoje, é um sujeito mais à esquerda. Ele quer ser um político moderno e arrojado, mas sua alma ainda é a de uma velha raposa.

Uma objeção ao meu ceticismo com relação ao candidato Ciro Gomes foi apresentada nestes termos: “Não é hora de marcar posição! É hora de conquistar o poder ou impedir que outro grupo o faça”. Entretanto, essa ideia que não vem de agora, me leva a considerar que a cada eleição acontece a mesma coisa, isto é, a ideia dá conta de que estamos reféns de um sistema que se mantém por inércia e por inépcia de todos os implicados. Ficamos rodando em círculos ciosos de tocar as margens do colapso, o ponto sem volta que deveríamos, acredito, atingir. Mas o que acontece de fato é que cada parte gerencia o medo a seu favor: a direita (o mercado) acena com a perigosa possibilidade de Lula voltar à superfície, enquanto a esquerda joga com a chance de Bolsonaro emplacar. São as regras do jogo, ok (só que não). E qual o problema em questionar essas regras, afinal já faz algum tempo que elas parecem não funcionar muito bem, não é mesmo?

IX

Deixamos que nos sequestrassem tantas conquistas e direitos que chegamos a flertar com um movimento (no mínimo) duvidoso como o dos caminhoneiros e começamos mesmo a achar plausível um candidato escorregadio e aparentemente sabe-tudo como Ciro Gomes. Toda eleição dá nisso: cada grupo, cada um de nós correndo para um lado e para o outro dizendo aos berros “precisamos fazer alguma coisa, urgentemente!”.

X

Nem que seja por um instante recuperem a sanidade, por favor. Diesel é uma coisa e gasolina é outra. Para quem usa gasolina será necessário inventar outra manifestação a favor da diminuição do preço e que produza no governo golpista um baque equivalente. Parece mentira, mas topei com postagens e comentários nas redes sociais de pessoas espantadas com a notícia de que a gasolina iria subir após o acordo fechado entre o governo e os líderes do movimento dos caminhoneiros.

Post scriptum

 Nestes vídeos do projeto da Globo “o brasil que eu quero…” quando aparece um produzido por um vivente do Continente do Rio Grande sempre tem uma anta com uma cuia de chimarrão na mão. Alguém me explique.

(*) Ronald Augusto nasceu em Rio Grande (RS) a 04 de agosto de 1961. Poeta, músico, letrista e ensaísta. É autor de, entre outros, Homem ao Rubro (1983), Puya (1987), Kânhamo (1987), Vá de Valha (1992), Confissões Aplicadas (2004), No Assoalho Duro (2007), Cair de Costas (2012), Oliveira Silveira: poesia reunida (2012), Decupagens Assim (2012) e Empresto do Visitante (2013). Dá expediente no blog www.poesia-pau.blogspot.com e é colunista do site http://www.sul21.com.br/jornal/

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.

 


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