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26 de março de 2018
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10:02

O cosmo e o corpo, distantes e jungidos

Por
Sul 21
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O cosmo e o corpo, distantes e jungidos
O cosmo e o corpo, distantes e jungidos
Divulgação

 Ronald Augusto (*)

Pound cita um estudioso da Odisseia que teria demonstrado que a geografia do poema é correta, ou seja, que ela seria produto da experiência de um sujeito conhecedor de navegação e que tivesse feito de fato o périplo. Dante conjuga em sua Commedia os saberes da ciência, da teologia e da filosofia da Idade Média. Sousândrade no poema em muitas vozes Inferno de Wall Street, se antecipando a Pound, incorpora o assunto econômico à aventura do poema.

Lanço mão dessas referências recuperadas à tradição para dizer que, desde a primeira leitura, O cochilo do céu despertou meu interesse porque seu autor, Marcel Fernandes, à exemplo desses grandes poetas, também se compromete com um conjunto de signos que em alguma medida não parecem típicos do gênero. Sem prejuízo de outros temas e campos semânticos, O cochilo do céu reúne muitos poemas nos quais são transfigurados tópicos da física e da astrofísica contemporâneas. Graças à sua condição de poeta, Marcel Fernandes faz, obviamente, um investimento antes de linguagem e de estruturas poéticas do que de divulgação científica diluída em versos. Seu apetite, de cunho estético, por estes assuntos vai até o ponto em que a precisão das informações das ciências em causa não emperrem a economia compositiva dos poemas.

Já em outras camadas de sentido, descubro na metáfora que dá título ao livro uma espécie de tensão ou oximoro. Um enlace-desenlace entre o cosmo e o corpo, distantes e jungidos. Às vezes o cosmo se metonimiza em humores e amores. O cochilo que é do corpo. O acaso dos desejos e da morte ao arrepio da indiferença celeste. Como se a nossa condição se plasmara a contragosto do cosmo.

A par desses traços exorbitantes (para usar uma imagem cosmonáutica) e inovadores da poesia de Marcel Fernandes, admiro também seu relacionamento sério com a poesia. O sentido apurado da cadência dos versos. A força anafórica como vetor de ritmos inumeráveis. A tradição como valor que se transfigura aqui e agora. O cochilo do céu não sucumbe à tirada espirituosa nem à concepção da poesia como jogo autocentrado que há tempos, entre os seus praticantes, vem resultando em mero virtuosismo metalinguístico. O respeito e a seriedade que o poeta dispensa à arte da poesia e que nos dá a ver em seu O cochilo do céu nada tem daquela gravidade retórica e afetada que as convenções literárias associam ao gênero. Seu apetite e seu amor críticos pelo poema mantêm sob controle essa disposição quase inescapável à ironia e ao cinismo a que estamos sujeitos – poetas e leitores – contemporaneamente.

Segue, de lambuja, um poema de O cochilo do céu para a fruição do leitor.

TEORIA X

a cosmologia pode explicar o nascimento do universo do mesmo

                                                [jeito que explica o controle da  gravidade sobre nossos corpos

até o ponto de colidirem

a partir da colisão 

nada se explica

o fenômeno ainda é desconhecido pelos cientistas 

quando dois corações colidem propagam tsunamis gravitacionais 

nem beuys previu em terremoto no palácio tamanha energia propagada

os padrões vibratórios são frenéticos

astros se formam a partir da agitação das partículas 

oscilações de luz ocorrem nos olhares com muita

                                  [frequência e o movimento dos corpos no espaço se tornam imprevisíveis

(*) Ronald Augusto é poeta, músico, letrista e crítico de poesia. É autor de, entre outros, Confissões Aplicadas (2004), Cair de Costas (2012), Decupagens Assim (2012), Empresto do Visitante (2013), Nem raro nem claro (2015) e À Ipásia que o espera (2016). Dá expediente no blog www.poesia-pau.blogspot.com  e escreve quinzenalmente em http://www.sul21.com.br/jornal/

 


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